sábado, 31 de maio de 2014

"Ética, violência, vergonha", por Roberto Romano

O Estado de São Paulo

 
Na vida coletiva educada importa sobretudo o uso correto do corpo. Um significado relevante da ética reside no termo hexis, palavra grega que indica se o indivíduo tem, ou não, boa postura física ou de caráter. “Caminhar, nadar, todas as espécies de coisas assim são específicas de sociedades determinadas”, ensina o antropólogo Marcel Mauss. O mimetismo que reproduz gestos corporais é adquirido inconscientemente. Mauss notou que as enfermeiras dos Estados Unidos, ao andar, seguiam o molejo das estrelas hollywoodianas. O modelo do cinema foi assumido pelas profissionais, delas extraindo a originalidade somática.

A imitação irrefletida de atos incorretos gera sociedades em que vigora a guerra de todos contra todos. O péssimo uso dos corpos e de seu habitáculo, o solo comum, transforma o coletivo num inferno. As massas e suas manifestações que resultam em violência física causam temor. Multidões ou indivíduos, no entanto, integram o gênero humano. Todos, sem a disciplina educativa, agem fora do controle racional. Platão aconselha os genitores: se o recém-nascido chora, verifiquem o corpinho. Caso ele grite no dia posterior, fiquem alertas. Se berrar sem motivo grave, ignorem: o tirano está se revelando.

O filósofo, em As Leis, diz ser preciso ensinar aos jovens a diferença entre a caça ao animal e a perseguição contra outros humanos. A tarefa caberia aos pais, professores, juízes. Nas ruas dominadas por sectários, ou nos shopping centers brasileiros, existe a tirania ruidosa dos que não respeitam a alteridade. Neles, muitos indivíduos se juntam para a caçada, desviam atividades legítimas e democráticas.

Tempos atrás, a pessoa que me seguia em shopping center paulista advertiu a genitora de uma criança que ali rodopiava aos berros, sem controle. Em vez de acatar o aviso (dado em tom gentil), a mãe vociferou que o alerta vinha de alguém ressentido, porque não percebia “tratar-se de uma inocente”. Segundos depois a inocente esmagou o pé da minha acompanhante e arrancou-lhe a unha. Foi preciso o socorro dos bombeiros para o curativo. A mãe da criança nem sequer pediu desculpas. Foi embora sem receber advertência dos seguranças.

No mesmo local, em época natalina, uma dama empurrou o ser humano que me acompanhava, jogando o indigitado ao chão. “Desculpa (notemos o uso do verbo, que põe o atingido no papel íntimo ou inferior do tu, sem tratamento civilizado), eu não vi”. Sem ajudar a vítima, ela rosna impropérios como réplica aos reclamos: “Sou de família importante, viajo sempre para Nova York e Paris”, etc. Felizmente, tudo resultou em escoriações menores.

Ver os demais seres humanos integra o primeiro treino de quem usa o espaço coletivo. “Não vi” é confissão de idiotismo, na semântica da palavra grega “idiota”: o que percebe apenas o seu interesse pessoal. Pelo menos três outros casos similares eu teria para relatar.

Se as minhas experiências não bastam, vejam o que aconteceu com a notável artista plástica Maria Bonomi e uma amiga em restaurante de shopping paulista. Elas jantavam pacificamente quando, na mesa ao lado, começou o berreiro. Reclamaram e receberam palavrões seguidos de uma garrafa de cerveja despejada sobre suas vestes. Os funcionários nada fizeram para impedir a cacofônica animalidade. Breve a Justiça ouvirá dois indivíduos que urinavam na frente de todo mundo num shopping brasiliense. Certo professor de educação física, ao exigir o necessário decoro, foi por eles atacado. Os agressores causaram-lhe traumatismo craniano e problemas de locomoção. Como sempre, o agredido é acusado pelos indecentes que estão presos, aguardando o pronunciamento dos juízes.

Todas esses fatos entram na ordem do que é ruim e feio em termos éticos. Os gregos indicavam o sentimento de quem se envergonha com as coisas odiosas usando o termo aidós – pudor, vergonha (cf. Cairn, D.: Aidós, the Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature). No Brasil a vergonha vem dos belos atos, nunca dos horrendos. Os nossos políticos replicam usos e costumes de uma sociedade que não enrubesce, nas ruas ou nos espaços de elite.

Egocêntricos, incapazes de ver os demais seres humanos, os desprovidos de respeito cidadão usam o carro como dirigem seu corpo: desobedecem aos sinais e limites de velocidade, desafiam leis, ignoram a preferência do pedestre nas faixas, estacionam em vagas de idosos e deficientes, furam as filas preferenciais. Donos do mundo, nunca recebem sanções negativas da Justiça. Preconceituosos, consideram engraçado ferir gays, negros, judeus, nordestinos. Como integram o grupo dos happy few, ninguém tem coragem de lhes impor decoro e respeito. Pelo mimetismo, seus costumes atrozes abarcam a sociedade, transformando-a em alcateia feia e virulenta.

Se muitos indivíduos empurram os outros, ameaçam sua integridade física em locais que deveriam ser pacíficos, no trânsito a crueza aumenta exponencialmente, pois os veículos são usados como armas. A covardia impera nas estradas e ruas do País, aço é movido contra carnes frágeis. Com autorização para matar por embriaguez ou estímulo de psicotrópicos, dada a leniência dos poderes públicos, integrantes da sociedade embrutecida matam no Brasil com enorme facilidade. Ainda não aprenderam a distinção entre caça aos bichos e caça aos humanos. As estatísticas de “acidentes” aqui trazem números superiores aos de muitas guerras.

O mimetismo, retomemos, ocorre sem maiores reflexões. Digamos aos ensandecidos do trânsito que eles são assassinos. Todos ficarão indignados porque fantasiam para si uma integridade corporal e de caráter (hexis) inexistente. O Brasil registrou 56.337 homicídios, o maior índice na feitura do Mapa da Violência. Praticantes do gesto incivil ainda têm a caradura de alardear nojo dos políticos corruptos, de quem são irmãos siameses. O belo e a vergonha não vigoram no solo brasileiro.