quinta-feira, 31 de julho de 2014

Aos 90, Abelardo da Hora critica miséria e explica fixação feminina

Um artista incansável

 
          

“Alegria é uma emoção, é uma sensação que me toma conta de manhã até de noite. Eu não tenho mais a mesma caminhada, a mesma desenvoltura que eu tinha antes, mas eu tenho uma resistência fora do comum porque eu não sou um velho qualquer, eu estou com  90 anos e trabalho como um gigante”Abelardo da Hora


Já passavam das 10 horas da manhã quando chegamos a um sobrado na Rua do Sossego, nem tão sossegada assim, para entrevistar o artista plástico Abelardo da Hora. Já da calçada dava para ouvir a música que tocava lá dentro. Era frevo. Bloco da Saudade. E lá vinha ele do fundo do corredor. Camisa de linho bege, bem engomada, como faz questão, e boné da mesma cor. Sentou-se no sofá, abriu um sorriso e soltou um “podemos começar”.

Conversamos durante uma hora e meia, um papo delicioso em que Abelardo narrou da origem de tudo até o que é hoje. Mostrou com orgulho algumas das suas obras abrigadas por lá. Nesta quinta-feira, dia em que este artista reconhecido internacionalmente como um dos maiores escultores brasileiros de todos os tempos e mestre de grandes nomes das nossas artes plásticas como Francisco Brennand, Gilvan Samico e José Cláudio, completa 90 anos, o Social1 fala da sua vida e da sua arte. A todos, uma deliciosa leitura.

 
 
Escultor, desenhista, gravador, gravurista e ceramista, Abelardo Germano da Hora é um dos raros expressionistas das artes plásticas brasileiras. Nasceu em São Lourenço da Mata, no Grande Recife. Veio para a Capital aos seis anos com oito irmãos para que o pai assumisse o cargo de chefe de tráfego na Usina São João da Várzea, de Ricardo Lacerda de Almeida Brennand. Ele era um menino, ainda sem saber direito que rumo tomar na vida, quando as artes plásticas entraram, assim, meio sem querer, na sua vida.
 
O pequeno Abelardo sonhava em ser mecânico. Tudo culpa do Zepellin, que viu sobrevoar sua casa, na Iputinga, em 1930, aos seis anos, fato que lhe rendeu uma fratura na clavícula quando o menino peralta tentou, no telhado, alcançar aquele enorme objeto voador. Na Escola Técnica em que todos os irmãos ingressariam, não havia vagas para o ofício que desejava seguir. Resolveu então acompanhar o irmão Luciano, mais novo um ano e que queria ser escultor, matriculando-se em artes decorativas.
Não demorou nadinha para que o talento de Abelardo fosse revelado. Logo no primeiro ano do curso foi descoberto pelo professor Álvaro Amorim enquanto fazia uma estatueta de dois repentistas. O mestre, impressionado com sua desenvoltura, imediatamente lhe concedeu uma bolsa para a Escola de Belas Artes. Aos 16 anos, já estava desenhando com modelo vivo, apesar da pouca idade. No último ano da Escola foi eleito presidente do Diretório Acadêmico de Belas Artes, quando implementou excursões para que os alunos desenhassem e pintassem o mundo lá fora.


ARTE COMO PROFISSÃO

 Foi à beira de um açude da Usina São João da Várzea que surgiu o primeiro convite para que Abelardo da Hora trabalhasse profissionalmente. Ricardo Brennand foi o primeiro e grande incentivador da sua arte. Montou oficina e olaria, chamou o jovem artista para morar lá e fazer cerâmica artística. Era janeiro de 1942.  Lá, conheceu Francisco Brennand, filho do seu chefe, que se preparava para prestar vestibular para Direito. O amigo passava as manhãs observando o trabalho daquele jovem escultor. Bastou para que, seis meses depois, o herdeiro dos Brennand resolvesse seguir também pelos caminhos das artes plásticas.

Foram quatro anos naquela Usina. Saiu por causa de uma “saliência” sua com uma das filhas do seu patrão, a jovem Conchita. Abelardo da Hora fez uma escultura chamada A Torre dos Meus Sonhos que em nada agradou o velho Ricardo. “Era a figura de uma mulher com a cara dela, dois cupidos brincando com sua cabeleira e um freguês agarrado nas pernas dela com a minha cara. Assumi para seu Ricardo que tinha avançado o sinal e fui embora”, contou.

Detalhe: No meio da nossa entrevista, Conchita, amiga de Abelardo até hoje, chegou ao sobrado na Rua do Sossego. Foi buscar o vidro de perfume do artista para comprar um igual e dar-lhe de presente.


 O INGRESSO NA POLÍTICA

 Em janeiro de 46 Abelardo da Hora foi para o Rio de Janeiro trabalhar numa fabrica de manequins como modelador. Nesse período, fez um trabalho para concorrer ao Salão Nacional de Belas Artes. “Eu tava numa saudade danada do Recife e dos meus parentes, então fiz uma escultura chamada A Família”. Por determinação do Presidente da República, o militar Eurico Gaspar Dutra, o concurso não aconteceu. “A política começou a entrar na minha cabeça por isso. Voltei para o Recife disposto a lutar contra esse tipo de brutalidade, entrei no Partido Comunista, fundei a Sociedade de Arte Moderna e a Associação Brasileira de Escritores – Secção de Pernambuco”, contou. Nasceu ali, também, a revolta daquele artista pelas inúmeras desigualdades existentes no Brasil.




Em 49 assumiu a presidêndia da Sociedade e resolveu fundar uma escola de iniciação às artes para dar aulas de graça. No período, o Abelardo formador de outros artistas, influenciou nomes como Gilvan Samico, José Cláudio e Aloísio Magalhães. ”Eu ensinei de graça durante dez anos uma geração de grandes artistas conhecidos no País todo. Pra mim, Samico é o maior gravador não só do Brasil, mas da América do Sul toda. Começou comigo, ele não sabia desenhar nada. Aliás, todos eles. E eu ensinei a eles com carinho, como se fossem meus filhos”, falou emocionado.

Já em 58, durante a prefeitura de Miguel Arraes, juntamente com nomes como Paulo Freire, Germano Coelho, Anita Paes Barreto, Geraldo Menuchi e Luiz Mendonça, ele criou o Movimento de Cultura Popular – MCP: ação política, cultural e educacional que tinha como intenção inserir o povo na sociedade. No auge do MCP, em 62 , Abelardo criou um de seus trabalhos mais pungentes: a série de 22 desenhos de bico-de-pena “Meninos do Recife”, que foi lançada em álbum como nota de apresentação de Miguel Arraes.


Um desses desenhos ilustra a edição francesa do livro “Geografia da Fome”, a pedido de seu autor, o médico e professor Josué de Castro (1908-1973). Os desenhos mostram a miséria das crianças de rua, com seus pés descalços na lama, pernas e braços finos, barrigas inchadas, rostos angulosos e magros e vestimentas de molambo. Nos olhares, tristeza e desespero. Poeta bissexto, Abelardo assim definiu em versos sua coleção:

Outro feito importante foi a criação do projeto de lei que obriga prédios no Recife, que tenham mais de 1500m², a terem obras de arte na sua decoração. O projeto foi levado à Câmara Municipal ainda na década de 1960, e foi aceito por unanimidade. Dessa forma, “O Recife se transformou em uma galeria de arte a céu aberto”, como classifica o próprio autor da lei.


 INDIGNAÇÃO COM A MISÉRIA
Olhar de menino e um eterno sorriso moleque. Nos seus noventa anos de vida Abelardo da Hora aprendeu que a vida é uma dádiva e, ao mesmo tempo, cruel, injusta. O homem, cidadão do mundo, sempre esteve inconformado com as injustiças sociais que assolam a humanidade. Nunca aceitou a miséria e levou seu inconformismo a inúmeras de suas esculturas. Foi em 1946 que criou uma dos seus trabalhos mais emblemáticos: A Fome e o Brado, na qual mãe e filhos agonizam na miséria enquanto uma mão erguida representa  o desejo de mudança.
1. Agreste 2. Flagelo
FAMÍLIA

A primeira exposição de Abelardo da Hora aconteceu em 1948, na sede da Associação dos Empregados do Comércio, na Rua da Imperatriz. Foi onde conheceu a mulher, Margarida, durante a visita de uma turma de concluintes do curso de Direito da UFPE. ” No meio da turma tinha uma moça magrinha que começou a perguntar coisa demais. Aí eu chamei para ver uma peça que eu estava acabado de fazer na minha casa, na rua dos Coelhos.


Nessa época eu era quase noivo de um violoncelo, uma morena linda. Quando meus pais viram Margarida disseram logo que era com ela que eu tinha que me casar. Em abril começamos a namorar, em 21 de outubro casamos”, contou. Abelardo e Margarida passaram  62 anos casados, tiveram 7 filhos, sendo 5 moças e 2 rapazes. O artista ficou viúvo há quatro anos.
BOEMIA
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“Passava a noite inteira no restaurante A cabana, ali no Treze de Maio, lugar que aglutinava toda a classe artística do Recife. Muitas vezes eu já estava deitado e chegavam a minha porta Aluísio Magalhães e o poeta Carlos Pena Filho, pra me levar para a boemia. às vezes a farra começava no Bar Savoy, depois íamos para lá onde estavam também atores como Lúcio Mauro, Arlete Sales e Hermilo Borba Filho”, relembra.

Nessas épocas teve inúmeros namoricos. Grande admirador das mulheres, elas e suas formas também são personagens fortes em sua obra. Moças de seios fartos e nádegas volumosas estão espalhadas em vários pontos do Recife, como o Shopping Recife. “Minha mãe dizia que eu fazia esses seios tão grandes porque quando era pequeno gostava muito de mamar. E, sabe, minha santa, até hoje eu gosto”, falou soltando depois aquela gargalhada.