segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Metade dos municípios brasileiros não terá verbas para saneamento a partir de janeiro

Alessandra Duarte e Efrém Ribeiro - O Globo

Decreto federal determina que cidades sem conselhos deixem de ser beneficiadas


A partir de 1º de janeiro, pelo menos metade das cidades brasileiras não poderá mais receber dinheiro federal para investir em saneamento básico. Decreto federal deste ano determinou que municípios que não tenham criado, até 31 de dezembro, órgão colegiado de controle social para o setor — ou seja, conselhos municipais ou algum instrumento semelhante para que a população acompanhe a execução de políticas na área — não terão mais acesso a recursos federais para investimento em serviços de saneamento. Segundo entidades representantes dos municípios, a estimativa é que não passa da metade das prefeituras o total de cidades no país com esse tipo de colegiado.

Também terminava no fim deste ano o prazo para que os municípios criassem um plano municipal de saneamento, ou então, do mesmo modo, não poderiam mais receber verba federal para investimentos no setor. Depois de reivindicações de entidades municipalistas — que afirmavam que as prefeituras não teriam tempo hábil para se preparar e criar seus planos até o fim de 2014 —, o governo federal resolveu, em março último, por meio do decreto 8.211/2014, adiar esse prazo para 31 de dezembro de 2015.

No entanto, esse mesmo decreto trouxe outra obrigação: a de que os titulares dos serviços de saneamento básico instituam, “por meio de legislação específica, o controle social realizado por órgão colegiado” para o setor de saneamento, com prazo até o fim deste ano — e esta data, segundo o Ministério das Cidades, não será adiada. Pela legislação do setor no Brasil, o titular do serviço de saneamento é o município (que pode conceder ou delegar os serviços ao setor privado ou ao governo estadual, por exemplo, mas continua sendo seu titular); apenas nas regiões metropolitanas há um debate sobre a divisão de responsabilidades na área entre prefeitura e governo estadual.

Segundo o Ministério das Cidades, essa vedação ao acesso de verba federal refere-se a dinheiro de transferências voluntárias da União para os municípios (caso de dinheiro de convênios), não as transferências obrigatórias constitucionais. É com o dinheiro de convênios que muitas prefeituras realizam obras e outros projetos de investimento na área.

— A estimativa é que somente de 20% a 30% dos municípios tenham conselho municipal que cuide de saneamento. Essa medida (a vedação do acesso ao dinheiro federal para investimentos) vai atingir, pelo menos, metade das cidades brasileiras — afirma José Carlos Rassier, coordenador da Escola de Gestão Pública (EGP) e secretário-geral da Associação Brasileira de Municípios (ABM); ele tem dado assessoria e capacitação a municípios justamente no setor de saneamento, por meio da EGP. — Quando chegamos para capacitar o pessoal nas prefeituras, as pessoas lembram que precisam criar o plano (municipal), mas, quando falo de conselho, controle social, muitos nem sabem do que se trata.

EM 2013, APENAS UM TERÇO COM PLANOS DE SANEMAMENTO

Técnicos de outra entidade, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), também mencionam o despreparo das administrações municipais. Segundo um desses técnicos, que participou de viagens a cidades de 17 estados este ano, num projeto da CNM chamado de Diálogos Municipais, boa parte das prefeituras ficou preocupada apenas com o prazo para a elaboração do plano municipal de saneamento — e acabou não dando atenção à outra obrigação trazida pelo decreto 8.211. Segundo a CNM, em 2013 apenas um terço das cidades brasileiras tinha plano municipal de saneamento. Em sua Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), o IBGE não registra a quantidade de municípios com conselho na área; segundo a CNM, porém, é provável que os municípios que não possuam plano municipal de saneamento também não tenham conselho atuando no setor.

De acordo com o Ministério das Cidades, os titulares do serviço de saneamento que não tiverem cumprido a determinação no prazo não terão acesso a recursos federais “quando especificamente destinados a investimentos em serviços de saneamento básico, sejam do Orçamento Geral da União ou de financiamentos que utilizam recursos do FGTS ou do FAT” (Fundo de Amparo ao Trabalhador). A restrição no acesso ao dinheiro, porém, é relativa apenas a operações e compromissos que venham a ser assinados depois de 31 de dezembro; convênios assinados antes, por exemplo, continuarão a ter repasses enviados normalmente.

Ainda de acordo com a pasta, os municípios podem se valer de órgãos colegiados já existentes para realizarem o controle social das ações de saneamento (um conselho municipal na área de Saúde ou Meio Ambiente, por exemplo). No entanto, é preciso que o titular do serviço de saneamento aprove uma lei específica determinando a realização de controle social no saneamento por meio desse órgão.

EM CIDADE DO PIAUÍ, PORCOS ATRAÍDOS POR ESGOTO

A dona de casa Maria da Cruz Costa da Silva, de 65 anos, mora há 28 no bairro Parque Nazária, próximo ao centro da cidade de Nazária — que não possui conselho municipal de saneamento —, a 31 quilômetros da capital piauiense, Teresina, e nunca teve direito à rede de saneamento básico. A água usada no banheiro de sua casa, tanto na pia quanto no sanitário, e a de todo o município correm para valas formadas entre as casas e o calçamento, acumulando esgoto próximo aos imóveis e atraindo os porcos.

A casa simples de Maria da Cruz é diariamente cercada de porcos que bebem a água acumulada na rede improvisada de esgoto, bem próxima de seu portão. Ao sair ou entrar do imóvel, a dona de casa é obrigada a desviar de porcos adultos e filhotes, que também usam o lugar para se refrescar na lama escura.

Para evitar que os porcos transmitam doenças para os seus sete netos, com idades entre quatro e 12 anos, Maria da Cruz proíbe que as crianças brinquem fora da casa. Mas a ordem da avó nem sempre é cumprida. Quase sempre é desobedecida, já que os netos sempre conseguem driblar a proibição ao pedalarem suas bicicletas ou ao jogarem bola no meio da rua, junto dos animais.

— Eu não deixo meus netos sair para rua, não. Eu proíbo. Eles brincam dentro de casa, no quintal — afirma Maria da Cruz, lamentando que a lama e a água do esgoto atraem não só os porcos que cria, mas também dos moradores das ruas vizinhas.

A dona de casa diz que “não foi feita a construção correta do calçamento da rua onde mora” e que faltam as redes de esgoto, por isso, o acúmulo de detritos em torno ou à frente das casas, segundo a dona de casa, causando doenças de pele.

— Com a água empoçada junta muita coisa ruim, muitos vermes e insetos como o mosquito transmissor da dengue. A água fica toda infiltrada e só escorre quando tem uma chuva grande. A limpeza é só quando acontece uma chuva grande, que leva os esgotos para o Rio Parnaíba, poluindo e transmitindo doenças para as pessoas — reclamou Maria da Cruz, adiantando que as crianças e os adultos frequentemente sofrem com gripes constantes e diarreia.

Sem constrangimento algum, O prefeito de Nazária, Ubaldo Nogueira (PTB), afirma que a cobertura de saneamento e de rede de esgotos no município, de 8.200 habitantes, é zero.

— No Piauí, não passam de 20, de um total de 224 municípios, os que têm rede de esgotos. Os municípios não têm recursos para saneamento, dependemos do Governo Federal —, tenta justificar Nogueira.

De acordo com o prefeito, 90% do Plano Diretor de Saneamento Básico já estão concluídos pela empresa de consultoria JLJ, e o Plano Municipal de Saneamento ainda está no período de elaboração.

Ubaldo Nogueira falou que, depois da conclusão do Plano Diretor de Saneamento Básico e do Plano Municipal de Saneamento, será possível a prefeitura de Nazária convocar representantes da sociedade para formar seu Conselho Municipal de Saneamento.

— Não temos ainda o Plano Municipal de Saneamento e o Conselho Municipal de Saneamento, que vai convocar assembleias e representantes da sociedade. Caso eu não faça isso o governo federal não mandará dinheiro para obras de esgotos e de saneamento, e a prefeitura não tem recursos para essa área — disse Ubaldo Nogueira, informando que a elaboração do Plano Diretor do Saneamento Básico está sendo financiado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa).