sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

"Espelho, espelho meu: que PT sou eu?", por Sandro Vaia

Com Blog do Noblat - O Globo


Essa crise de identidade do partido do governo na verdade desmascara aquilo que a campanha se esforçou para esconder: era mentira que vivíamos num mar de rosas


O PT está vivendo uma aguda crise existencial e procura, dentro de sua própria psique, a verdadeira identidade que o trouxe até aqui, ao início de seu quarto mandato consecutivo no comando do Poder Executivo.
Deitado no divã do psicanalista, o partido rastreia seu passado, compara-o com as suas ações presentes, e indaga: “doutor, quem sou eu?”.
Afinal, o PT é a presidente que vai pedir a bênção de Pachamana e dá as boas entradas ao terceiro mandato consecutivo do cacique Evo Morales ou é o desenvolto aprendiz de banqueiro Joaquim Levy, que é saudado por ferozes capitalistas em Davos como a encarnação do bom senso e domador dos arroubos esquerdistas de um governo que tratou a responsabilidade fiscal até aqui como uma espécie de espoliação criminosa dos direitos da classe trabalhadora.
A memória da campanha eleitoral ainda está muito recente. Aquele sumiço da comida da mesa das crianças a cada vez que as taxas de juros sobem é uma das fantasias mais dramáticas que o marketing eleitoral conseguiu produzir em toda a sua desonesta trajetória de vida.
Cenas de cortar o coração. Não é dramático que isso já tenha acontecido três vezes desde que as urnas foram abertas dando a vitória exatamente a quem acusava o adversário de pretender fazer isso porque, se vencesse, governaria “para os banqueiros”?
Nada nada, são 19 bilhões de reais adicionados à dívida interna, maldade que só os reacionários da oposição seriam capazes de perpetrar contra a comida das crianças pobres.
O novo ministro da Fazenda, ortodoxo importado diretamente do território inimigo, despiu o manto diáfano da fantasia que o seu antecessor vestiu durante todos os seus anos de ministério, revogou o uso metódico da mentira, e disse sem subterfúgios que teremos um “flap” na economia nos próximos três meses; isso quer dizer que a economia  não crescerá, ou na pior das hipóteses, enfrentará uma “forte  recessão", segundo as previsões do guru presidiário, José Dirceu, estridente voz da oposição interna.
Enquanto a presidente, como um anjo de Wim Wenders, sobrevoa a realidade e deixa a Joaquim Levy a tarefa de trazer à tona a crueza dos fatos, o PT se estilhaça, tentando salvar a honra da casa diante da contradição entre palavra e gesto.
Em 15 dias, o governo Dilma Roussef criou 30 bilhões de receitas novas aumentando impostos e derrubou 18 bilhões de despesas eliminando direitos trabalhistas, coisa que a então candidata jurou que não faria “nem que a vaca tussa”. Os ministérios continuam sendo os mesmos 40, da carcaça da Petrobras continua emanando o mau cheiro da corrupção, e a batalha pela manutenção da fidelidade da base aliada ainda nem começou, e o governo já aparece prostrado antes de começar de fato.
Enquanto a oposição formal ainda não coordenou um discurso coerente e muito menos uma estratégia de ação, o PT esquizofrenicamente tenta vestir as máscaras de oposição e situação ao mesmo tempo: contra o ônus da austeridade mas a favor do bônus da gastança.
Essa crise de identidade do partido do governo na verdade desmascara aquilo que a campanha se esforçou para esconder: era mentira que vivíamos num mar de rosas, era mentira que a economia estava ajustada, era mentira que éramos vítimas de uma crise externa.
Com a ajuda do PT ou contra o PT, a maior tarefa do novo governo será a de consertar os estragos do velho.
Dilma Rousseff (Foto: Arquivo Google)