sábado, 24 de janeiro de 2015

"Pelotão de fuzilamento", por Demétrio Magnoli

Folha de São Paulo


Passeio na Plaza Bolívar, em Bogotá. A prefeitura da cidade pontilhou-a de cartazes cilíndricos com o desenho de um lápis e a frase "Eu sou Charlie". No Brasil, nenhuma autoridade prestou homenagem aos cartunistas assassinados. Horas antes, apesar dos apelos reiterados de Dilma Rousseff, o brasileiro Marco Archer era fuzilado na Indonésia. Sob um sólido silêncio do Congresso e uma certa indiferença da opinião pública, o mesmo destino aguarda Rodrigo Gularte. 

Perdemos a capacidade de nos indignar com qualquer coisa que não seja o apagão, a torneira vazia, o crédito escasso ou o arrocho tributário. É que nossos governos falam demais em "soberania" e seus áulicos, na universidade e no jornalismo, não param de escrever a palavra "cultura".

Os direitos humanos nasceram para desafiar a soberania absoluta dos Estados. Na solicitação de clemência ao presidente indonésio Joko Widodo, Dilma mencionou o respeito à "soberania" do país. Ela não tinha alternativa, naquelas circunstâncias, mas o mal já estava feito. Ao longo do ciclo de governos Lula e Dilma, o Brasil abusou da palavra mágica sempre que um ditador "amigo" violava os direitos de seus cidadãos –em Cuba, na Venezuela ou na Síria. Os fuzilamentos na Indonésia coincidem com o início da libertação de cerca de 300 jihadistas indonésios condenados por atos de terror entre 2002 e 2009. 

Uma democracia que fuzila traficantes comuns ou simples "mulas" zomba de princípios básicos de justiça e decência. Mas, prisioneiro de suas deploráveis convicções, o governo brasileiro não apresentará uma moção condenatória ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os direitos humanos foram declarados universais pois atravessam fronteiras nacionais e religiosas. Na Arábia Saudita, um blogueiro foi condenado a mil chibatadas por expressar suas opiniões. A monarquia de Riad justifica a pena repugnante em nome do imperativo da defesa do Islã. "Cultura" é a palavra que a Casa de Saud usa para ocultar as motivações políticas da repressão. A invocação da "cultura" repetiu-se vezes sem conta nos jornais e redes sociais do Brasil desde os atentados de Paris. 

Os nossos sábios inventaram um conto sobre o conflito entre os princípios da liberdade de expressão e do respeito à fé religiosa a fim de mascarar a lógica do jihadismo, que não precisa de charges para matar. Widodo sacou a "cultura" do bolso para responder aos protestos da Anistia Internacional. Os fuzilamentos, explicou, destinam-se a proteger a Indonésia da permissividade ocidental.

A soberania absoluta é, por direito histórico, um tema da extrema-direita, que define a nação nos termos do sangue e da raça. As narrativas xenófobas de Marine Le Pen, na França, do Pegida, na Alemanha, e do Ukip, na Grã-Bretanha, são manifestações atuais dessa tradição. Stálin e, mais tarde, os nacionalismos anti-imperialistas tomaram o conceito emprestado para envernizar a edificação de Estados que criminalizam a divergência política. 

O "direito soberano" de fuzilar traficantes, supliciar blogueiros ou aprisionar dissidentes deve ser condenado, ou admitido, em todos os lugares –na Indonésia, na Arábia Saudita e em Cuba. A fraqueza dos apelos de Dilma por Archer e Gularte decorre das oscilações do governo sobre essa encruzilhada política e moral.

A cultura, escrita no singular, é uma invenção política do nacionalismo romântico.

Os discursos binários sobre Ocidente/Oriente e a fabricação de entidades totalizantes abstratas como "os muçulmanos" são artefatos destinados a submeter populações, organizar projetos de poder e justificar abusos de governos despóticos. No Brasil, essa falácia antropológica adquiriu uma estranha respeitabilidade acadêmica. Nossas praças não têm homenagens a cartunistas ou protestos contra o açoitamento de blogueiros. Widodo pode fuzilar quem quiser.