domingo, 1 de fevereiro de 2015

"Levy e a travessia do deserto", por Clóvis Rossi

Folha de São Paulo


Um amigo do ministro Joaquim Levy, e que é interlocutor eventual também da presidente Dilma Rousseff, demonstra muita insegurança em relação à possibilidade de que a presidente respalde Levy neste ano que promete ser a travessia do deserto.

Que o ano será difícil parece certo. O próprio Levy já admitiu que poderá haver, a princípio, uma queda do PIB.

O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, por sua vez, disse, em almoço no Fórum de Davos, que a inflação tende a ter um aumento a princípio, embora ele esteja certo de que cairá mais adiante.

Ou seja, o ajuste que a nova equipe econômica está começando a fazer coincidirá com um período de inflação mais alta e crescimento negativo ou ainda mais baixo do que o nanico nível dos últimos anos.

Seria tentador, para os críticos do ajuste, culpá-lo por essa desagradável combinação. Não é verdade (os maus resultados previstos para 2015 foram semeados em 2014, antes, portanto, do ajuste).

Não importa. O que importa é que Dilma, que nunca foi fã da austeridade nos termos em que Levy está trabalhando, pode não segurar as mãos do ministro enquanto ele atravessa o deserto.

É sintomático dessa possibilidade o fato de que a assessoria de imprensa da Fazenda viu-se forçada a emitir dois desmentidos que não desmentem nada a entrevistas que o chefe dera ao "Financial Times" e à agência Dow Jones.

Neste segundo caso, a assessoria diz que não procede a informação de que "ficará mais claro em um mês se haverá necessidade de um racionamento de eletricidade".

O ministro de fato não fez tal afirmação com todas as letras, mas soltou um "yaa" (um "yes" americanizado) para a pergunta "é cedo para saber sobre racionamento?".

Além do "yaa", Levy acrescentou: "Nós ainda temos dois meses".

Vem o "FT" e publica que o Brasil está pronto para uma "controvertida reforma dos programas de bem-estar social" [especificamente quanto ao mercado de trabalho].

Levy de fato não falou em reforma, mas foi explícito: o desenho dos benefícios por desemprego "está completamente desatualizado" ("out of date").

Se é assim, qualquer governante sério iria reformá-lo, certo? Logo a conclusão do "FT" é correta.

Fica claro que Levy pisa em ovos ao abrir a boca, com evidente receio de sofrer a mesma reprimenda que seu colega Nelson Barbosa, quando este falou sobre mudança no reajuste do salário mínimo.

Seus desmentidos não se destinam ao público em geral, mas a UM público em especial, que atende pelo nome de Dilma Vana Rousseff.

Só pode significar que o ministro, como seu amigo, não está seguro de que a presidente segurará as pontas até que a travessia do deserto se complete. Se é que se completará.

Ajustar as contas públicas tornou-se necessário, mas só uma fé cega no valor teológico de ajustes orçamentários faz acreditar que bastam para conduzir a um crescimento robusto.

Se fosse assim, a Europa estaria vivendo um "boom" gigantesco, pelo tamanho do ajuste que está fazendo há cinco anos.