segunda-feira, 9 de março de 2015

"Feijão-com-arroz na cozinha petista", por Raul Velloso

O Globo



Por mais desaconselháveis que sejam as analogias entre diferentes períodos da história econômica dos países, em 2015 a administração da economia brasileira começa com muita coisa em comum com a experiência da transição entre os governos Sarney e Collor. Naquela época, a inflação campeava, depois dos fracassados Planos Cruzado e Bresser, e Sarney foi levado a colocar, nos ministérios da Fazenda e Planejamento, a dupla Maílson da Nóbrega-João Batista (de cuja equipe participei), burocratas competentes e afinados, mas sem o charme e a ousadia dos ministros anteriores.
Totalmente desconectada das experiências heterodoxas prévias, a dupla passou a conduzir a política segundo a literatura econômica convencional, algo que ficou conhecido como “feijão com arroz”. Não conseguiu acabar com a hiperinflação, mas permitiu a Sarney evitar o pior e, assim, preservar o mandato presidencial até a mudança que viria em seguida. Mais à frente, Marcílio Marques Moreira desempenharia papel semelhante na fase final da debacle da heterodoxia do governo Collor, embora com pouco tempo para impedir o impeachment do presidente.
De lá para cá, a hiperinflação acabou, mas a difícil herança do primeiro para o segundo mandato do atual governo revela fracassos importantes.  A ausência de uma ação pronta, decidida e convencional, para corrigir os erros, poderia levar à degringolada das condições econômicas, sociais e políticas do País, quando muitos sonhavam com o país a pleno vapor. Como chegamos a isso?
Sem aconselhamento adequado, Dilma parece não ter percebido que o modelo de forte expansão do consumo via crédito e gasto público, em vigor desde o primeiro mandato de Lula, estava se esgotando, inclusive como seria de esperar que ele tendesse, após algum tempo, a prejudicar a indústria, num de seus aspectos mais apreciados, o forte aumento dos salários.
Sem poder competir com os preços externos de industrializados em queda ou estáveis, o custo cada vez mais alto da mão-de-obra local passou a reduzir a competitividade do setor, especialmente quando se viu que a produtividade setorial não acompanhava o crescimento dos salários. Assim, desde algum tempo, o PIB da indústria estagnou ou caiu.
Puxados por isso e pelo fim da fase de aumento continuado dos preços de nossas commodities de exportação, os investimentos brasileiros pararam de aumentar acima do crescimento do PIB. Por sua vez, depois de ter crescido significativamente numa primeira fase, o crescimento do PIB vem fraquejando nos últimos anos.
Este espaço é insuficiente para enumerar mais detalhes, mas alguns aspectos da ação na primeira fase do atual governo agravaram os problemas existentes ou trouxeram novos. Adotou-se a prática de buscar tarifas públicas no menor nível imaginável, para estimular o consumo e reduzir custos da indústria, mesmo à custa de desestimular a produção interna em setores cujos produtos ou serviços não poderiam ser substituídos por importações. Resultado: faltou produto ou serviço.
Um bom exemplo é a geração de energia elétrica, setor onde já se viu que o atual risco de colapso no abastecimento se deve mais a políticas erradas do que a clima desfavorável. Na mesma linha, a equivocada política de concessões de transportes tem impedido que os serviços cresçam na qualidade e quantidade desejadas. Isso tudo desestimulou adicionalmente os investimentos.
Para completar, um crescente desajuste fiscal se seguiu ao forte ritmo de crescimento dos gastos públicos, peça básica do modelo pró-consumo, e a um novo e expressivo programa de desonerações tributárias, este voltado especialmente para a proteção da indústria. Junto com a queda do PIB, esse programa derrubou rapidamente o crescimento da arrecadação, sem mostrar a que veio na indústria.
Avançando até a fase atual, embora sem abordar muitos aspectos relevantes, a difícil situação que se seguiu ao momento da reeleição apontava, mantido o quadro vigente, para a perda da classificação de bom pagador concedido pelas agências internacionais de risco, o que implicaria forte revoada dos volumosos recursos aplicados no País.
Ou seja, mesmo antes de mudar o foco do modelo para o investimento, tínhamos uma grande quantidade de problemas para equacionar, incluindo uma enorme crise fiscal à vista, com risco de degringolada da economia. Foi aí que, a exemplo da época de Sarney ou de Collor, o instinto de sobrevivência falou mais alto, levando Dilma a chamar Levy, antítese do ministro anterior, para assumir o Ministério da Fazenda, em dupla com Nelson Barbosa, comandar o equacionamento do problema fiscal de curto prazo e começar a corrigir o arsenal das políticas equivocadas. É aqui que estamos.
Minha aposta é que Levy, apesar de todas as dificuldades, dará conta do recado inicial, não só por sua formação sólida e sua demonstrada competência em outros postos, como porque Dilma sabe, como Sarney à época, que se não fizer o feijão-com-arroz que tem de ser feito, o País desmorona, e a Presidenta, o partido, e seu candidato para 2018, irão junto.