domingo, 29 de março de 2015

"Já não cabe o sussurro", por Clóvis Rossi

Folha de São Paulo


A oposição venezuelana desistiu definitivamente de contar com a Unasul (União de Nações Sul-americanas) como mediadora de um eventual diálogo com o governo.

Tanto desistiu que resolveu recorrer a uma personalidade extrarregional para defender o que a Unasul deveria ter defendido desde o princípio de sua mediação: a libertação dos presos políticos Leopoldo López e Antonio Ledezma.

A personalidade em questão chama-se Felipe González, foi bem-sucedido presidente do governo espanhol (1982-1996) e tem impecáveis credenciais democráticas. Também as têm os dois ex-presidentes convidados por González para acompanhá-lo no trabalho de resgatar López e Ledezma, o brasileiro Fernando Henrique Cardoso e o chileno Ricardo Lagos.

O ideal seria que o Brasil, principal integrante da missão mediadora da Unasul, respaldasse o trabalho dos três ex-mandatários. Afinal, o foco que o Itamaraty sempre definiu para a mediação é o de assegurar uma solução democrática para a crise venezuelana, o que passa por eleições livres e justas, para as quais é indispensável a libertação dos presos políticos.

Não adianta o governo venezuelano dizer que não são presos políticos, mas "políticos presos". Rebate Felipe González: "São políticos presos por serem políticos", o que é evidente atentado à democracia.

O apoio à missão González, de resto, não seria nenhuma ousadia a desafiar a inoxidável cautela de um Itamaraty reduzido ao "sussurro", conforme editorial do "New York Times".

Afinal, Ernesto Samper, secretário-geral da Unasul e que tem se mostrado mais próximo do governo venezuelano do que seria prudente em um mediador, já endossou o ex-mandatário espanhol.

Disse a "El País" que, "além de um grande político, é um homem de Estado. Sei que se apoiará nas mesmas vias institucionais em que a Unasul está se apoiando para encontrar saídas pacíficas, democráticas e constitucionais para a complexa conjuntura política da Venezuela, invocando, por exemplo, a aplicação das normais universais do devido processo".

Só invocar tais normais já seria um enorme desafio a um regime que transformou o Judiciário em apêndice do Executivo e não respeita normas universais, usuais em qualquer democracia.

A missão González tende a ser um embaraço para Nicolás Maduro, se ele puser obstáculos a ela. O jornalista Joaquín Prieto ("El País") acompanhou o então líder socialista em atividade similar realizada no Chile, durante a ditadura Pinochet.

Recorda: González "pôde visitar sem problema algum na cadeia de Capuchinos a seus defendidos, Erich Schnake e Carlos Lazo, socialistas chi­le­nos con­de­na­dos por tri­bu­na­is de gue­rra a longas pe­nas de pri­são sob a acusação de sedição e traição".
Mais: González foi recebido pela ministra da Justiça e pelo presidente do Tribunal Supremo.

A dúvida do jornalista Prieto é singela: "Proibirá Maduro o que autorizou Pinochet?"

Se o fizer, escancarará o que se vai tornando mais e mais evidente: a Venezuela é uma ditadura.

O Brasil será conivente?