quinta-feira, 5 de março de 2015

"O burocratismo não é brincadeira", por Everardo Maciel

Com Blog do Noblat - O Globo


Como esperar que um contribuinte, em débito com o fisco, possa pagar a dívida se ele está impedido de operar?

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Burocracia (Foto: Arquivo Google)
No século XVIII, o economista francês Jean-Claude Marie Vincent (1712-1759) cunhou a expressão burocracia para traduzir a influência, já àquela época crescente, da administração pública no cotidiano das pessoas, sem que represente nenhum ganho para o Estado ou para a Sociedade, exceto para aqueles que exploram a própria atividade.
No Brasil, o burocratismo, como modelo de administração pública marcado por uma excessiva burocracia, tornou-se instituição permanente. Alguns atribuem essa deformação à nossa herança ibérica; outros preferem associá-la ao nosso déficit de cidadania.
Um vistoso símbolo do burocratismo é a tomada de três pinos, triste inovação brasileira concebida no pressuposto de ampliar os níveis de segurança das tomadas. Não tem similar no mundo, não sendo, portanto, reconhecida pelos adaptadores universais de tomadas. Significou tão somente custo para os que tiveram que fazer adaptações em suas residências e locais de trabalho, e, concomitantemente, lucro para os fabricantes das novas tomadas.
A exigência da tomada se junta a outras invencionices que alcançaram os proprietários de automóveis, como o já abolido kit de primeiros socorros e o ainda não obrigatório novo extintor de incêndios. 
Outra pérola do burocratismo é o reconhecimento de firmas, que representa importante fonte de renda para os mais de 14 mil cartórios brasileiros, titulares de uma atividade extremamente lucrativa, sem que se conheça sua real contribuição para o desenvolvimento nacional.
No âmbito da administração tributária, o burocratismo dispõe de território fértil para desenvolver-se. São tantos os exemplos, que enumerá-los demandaria um alentado compêndio de esquisitices. Destaco alguns casos.
Cadastros de contribuintes. O Brasil ostenta a pouco lisonjeira condição de único país em que cada ente federativo tem cadastro fiscal próprio. Assim, o contribuinte se obriga à inscrição nos cadastros da União, dos Estados e dos Municípios, reproduzindo basicamente as mesmas informações.
Para enfrentar essa insólita situação, foram implantadas soluções paliativas, como o chamado cadastro sincronizado, que, no fundo, revela apenas a resistência dos “donos” dos cadastros que insistem em preservar essa esdrúxula prerrogativa. Pura perda de tempo e dinheiro.
Deveria ser instituído um cadastro único dos contribuintes, administrado por órgão de âmbito nacional, com acesso facultado a todas as administrações fiscais.
Inscrição e baixa de contribuintes. Esse processo constitui verdadeiro calvário, em virtude dos inúmeros alvarás requeridos e das impertinentes exigências da fiscalização por ocasião da baixa, sem falar na obrigação de inscrever-se nos diferentes cadastros dos entes federativos.
Os alvarás guardam parentesco com o vetusto imposto do selo. Os estabelecimentos, para que possam abrigar uma atividade produtiva, devem estar sujeitos à fiscalização permanente, e não a um alvará. Concedida a inscrição ou efetivada qualquer mudança cadastral, a administração fiscal deveria dar ciência aos demais órgãos de fiscalização para que, segundo seus próprios critérios, exerçam sua competência e, se for o caso, interditem o estabelecimento.
Inexistindo pendência fiscal, deve ser concedida a imediata baixa do contribuinte. Identificada, posteriormente, alguma infração, basta proceder-se à reinscrição de ofício e instaurar um procedimento de fiscalização, com responsabilidade solidária dos sócios.
Número de inscrição. Sem que exista justificação plausível, o brasileiro é identificado por vários números de inscrição (carteiras de identidade e de motorista, títulos de eleitor e de reservista, CPF, SUS, PIS/Pasep, etc.).
A carteira de identidade não é nacional, o que permite que uma pessoa tenha, ilicitamente, vários documentos expedidos por diferentes Estados. Da mesma forma, é comum o cidadão ter diversas inscrições no PIS, porque a solicitação é feita pelo empregador, sem a participação do empregado, e a inscrição não se sujeita a críticas.
Essa diversidade de registros é fonte de erros frequentes e opera em desfavor da agilidade nos sistemas de informação.
O CPF é, seguramente, o mais consistente cadastro nacional, sendo utilizado praticamente em todas as operações comerciais. Sem prejuízo da preservação dos cadastros específicos (justiça eleitoral, SUS, etc.), por que não utilizar-se o número do CPF como chave de acesso a todos os cadastros?
Certidões negativas. Na coleção de jabuticabas, as certidões negativas têm merecido destaque. O STF tem uma robusta jurisprudência contra a exigência de certidões negativas para que uma empresa participe de licitações ou contrate com o setor público, por entender que se trata de sanção política que busca, por via oblíqua, efetivar a cobrança de passivos tributários. A despeito disso, essa exigência se mantém.
Como esperar que um contribuinte, em débito com o fisco, possa pagar a dívida se ele está impedido de operar?
O curioso é que, sendo referida ao passado, as certidões têm validade para o futuro (seis meses). Seria maravilhoso se os médicos pudessem dar uma garantia, com essa validade, para seus pacientes.
As certidões deveriam ter caráter meramente informativo, revelando o histórico do contribuinte.
O burocratismo merece uma atenção especial dos governantes.