quarta-feira, 1 de abril de 2015

"Mordomia isonômica", editorial da Folha de São Paulo

Como se o Poder Judiciário habitasse um mundo à parte, no qual as privações econômicas e o ajuste das contas públicas são um mito, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram elevar o valor das diárias que recebem quando precisam viajar a trabalho.

Desde janeiro, o STF desembolsa R$ 1.125 para custear alimentação, hospedagem e locomoção de seus integrantes em viagens domésticas. A cifra representa acréscimo de 83% em relação aos R$ 614 vigentes em 2013. No caso de deslocamentos ao exterior, o montante passou de US$ 485 para US$ 727 (cerca de R$ 2.300), aumento de 50%.

Também houve reajuste na remuneração extra de juízes auxiliares, analistas e técnicos judiciários, que ganham, respectivamente, 95%, 55% e 45% dos valores destinados à cúpula da corte.

Já se imaginava, e era possível lamentar por antecipação, que a canetada do Supremo não ficaria sozinha –e de fato não ficou, como mostrou reportagem do jornal "O Globo" publicada nesta terça (31).

O gesto do STF foi imitado pelos demais tribunais superiores, pelos tribunais regionais federais, pelas varas federais e do trabalho e, para piorar, pelo Conselho Nacional de Justiça, órgão que deve planejar e fiscalizar as ações do Judiciário.

Verdade que gastos nessa escala tornam-se quase invisíveis diante das dezenas de bilhões de reais que o país tem de poupar. As despesas com viagens limitam-se a poucos milhões, quantia que, ao menos do ponto de vista do ajuste econômico, não é mais que simbólica.

É também simbólico, de todo modo, que seja esse o exemplo dado pelos tribunais. Por que um ministro precisa consumir tantos recursos públicos? Não é difícil orçar viagens a um custo bastante inferior ao das diárias do Supremo.

Mesmo em conjuntura menos conturbada, faria sentido despender R$ 31.188 (sem contar passagens aéreas) para o ministro Ricardo Lewandowski ficar de 11 a 25 de fevereiro na Europa, onde se encontrou, entre outros, com o papa Francisco e a rainha da Inglaterra?

Por falar em símbolos, embora quatro dias de trabalho não possam zerar a fila de processos na Justiça, cabe perguntar por que os tribunais superiores cancelaram os julgamentos durante esta semana. Para a maioria dos brasileiros, apenas sexta-feira é feriado.

Enquanto se discute que contribuição cada setor da sociedade pode dar para tirar o país do atoleiro, membros do Judiciário tratam de garantir sua boquinha. O mau exemplo parte da mais alta corte, e as demais, talvez invocando um cínico "princípio da mordomia isonômica", preferem se igualar no vício a lutar por mais virtude.