sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A queda do capitalismo de compadres

José Fucs - Epoca


A prisão pela Operação Lava Jato de empresários que ascenderam graças a conexões com o poder mostra a falência do modelo econômico que floresceu nos governos de Lula e Dilma



Empresários presos (Foto: Giuliano Gomes/Estadão Conteúdo, Fábio Motta/ Estadão Conteúdo, Cassiano Rosário/Futura Press/ Folhapress, Giuliano Gomes/Estadão Conteúdo)
Ao ser levado por uma caminhonete da Polícia Federal para o presídio Bangu 8, na Zona Norte do Rio de Janeiro, depois de ser preso em mais uma fase da Operação Lava Jato, o banqueiro André Esteves expressava uma imagem de derrotado. Com os olhos arregalados por cima dos óculos, barba por fazer, cabelos despenteados e vestindo um agasalho de moletom azul e uma jaqueta preta por cima, ele em nada lembrava o financista que se tornou um dos homens mais ricos do Brasil e transformou seu BTG Pactual no maior banco de investimento independente do país.
Conhecido pelas estreitas relações que mantinha com o círculo do poder, Esteves parecia fora de combate, incapaz de reverter uma situação que fugira a seu controle. Hoje, ele veste o uniforme dos detentos e, segundo relatos de quem o visitou na prisão, está com a cabeça raspada, dorme em cama de alvenaria, toma banho com sabão em barra e tem de conviver com os ratos que vêm do aterro sanitário localizado na vizinhança. “É uma mudança de paradigma no país”, afirma Jorge Abrahão, presidente do Instituto Ethos, uma organização voltada para a atuação socialmente responsável das empresas. “As pessoas estão vendo que ninguém é intocável”, diz o advogado e consultor Barry Cohen, especializado em questões de corrupção empresarial.
A queda de Esteves e de outros pesos pesados que prosperaram nos governos Lula e Dilma – como Elmar Varjão, presidente da construtora OAS, detido na sexta-feira, dia 11, Marcelo Odebrecht, o chefão da construtora que leva seu sobrenome, Ricardo Pessôa, sócio fundador da UTC Engenharia, e Leo Pinheiro, o ex-presidente da construtora OAS – representa também o atestado de óbito de um modelo econômico que predominou nos últimos dez anos, nos governos do PT. Sua falência se espelha em vários indicadores. Em novembro, a inflação anual chegou a 10,48%, a primeira vez que atingiu dois dígitos desde novembro de 2003. Na semana passada, a agência de classificação de risco Moody’s sinalizou também que o Brasil deverá perder o grau de investimento – o que, em breve, deverá se tornar o segundo rebaixamento da nota de crédito do país. O primeiro ocorreu em setembro, quando a agência Standard & Poor’s tirou o selo de bom pagador do Brasil.
Inspirado na receita de um capitalismo de Estado, que, em determinado momento, parecia que iria se impor na esteira da ascensão da China, o modelo petista é, na realidade, um capitalismo de compadrio baseado na relação incestuosa entre o setor privado e o governo. Ele facilitou o desenvolvimento de empresários bem conectados com políticos e autoridades influentes e a criação de uma rede de corrupção em larga escala sem precedentes. O cardápio de vantagens oferecidas aos compadres à custa dos contribuintes era variado. Havia opções para cada tipo de freguês, da concessão de empréstimos a juros de pai para filho pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao aumento de alíquotas de importação para beneficiar setores e empresas específicos; da compra de ativos privados por preços superfaturados à preferência na contratação de obras e serviços pelo governo. Até a alteração de tratados internacionais, como aconteceu com o acordo feito com o México para abertura do setor automobilístico, fazia parte da lista.
O modelo do PT estava ligado também ao pagamento de propinas em contribuições legais ao partido, segundo as investigações da Lava Jato, e ao relacionamento mantido pelos empresários com Lula. Em troca de privilégios, eles lhe garantiam algum tipo de contrapartida. Podia ser a reforma de um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, onde ele costuma fazer churrascos nos fins de semana com os amigos, a cessão de um avião para suas viagens pelo país e ao exterior, o pagamento inflado por palestras ou o investimento em negócios de seus filhos. “Na hora que o Estado tem um poder discricionário muito forte e a capacidade de tratar de forma diferente grupos semelhantes, aumenta a possibilidade de haver um comportamento inadequado”, diz o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, escola de economia e administração de São Paulo, e ex-secretário de Política Econômica no governo Lula. “Quando o governo escolhe os vencedores e os perdedores, aposta em campeões nacionais, aumentam os incentivos para os políticos se envolverem em negócios escusos.” 
Amigos do rei (Foto: Arte/Época e Estadão/Conteúdo)
O modelo petista ganhou espaço também porque, do outro lado, havia empresários e executivos que lhe davam suporte e se beneficiaram dele. No Brasil, desde a industrialização promovida pelo governo Getúlio Vargas, os empresários tradicionalmente vivem à sombra do Estado. Acostumaram-se a arrancar benefícios de todos os tipos, como linhas de crédito com juros subsidiados e reserva de mercado em relação às importações. Exceto por breves períodos, como na década de 1990, quando o país se abriu um pouco mais à concorrência externa e cortou significativamente os favores distribuídos às empresas, as relações do setor privado com o governo sempre foram relativamente promíscuas. “É injusto dizer que essa agenda foi só do governo, porque o setor privado a apoiou”, afirma Lisboa (leia mais na página 70). “As empresas devem aumentar seus lucros por meio de ganhos de produtividade, por serem eficientes, e não porque têm ponte aérea com Brasília.”
No Brasil, poucos empresários conseguiram ganhar musculatura no mundo dos negócios sem receber favores do governo. Jorge Paulo Lemann, principal acionista da ABInBev, maior fabricante de cerveja do mundo, que controla a Ambev no Brasil, é a famosa exceção que confirma a regra. A Ambev obtém, dentro das regras do jogo, créditos subsidiados do BNDES, mas não se tem notícia de que Lemann e os executivos da empresa tenham ido a Brasília para passar o pires. Empresários como Marcelo Odebrecht e André Esteves poderiam ter seguido os passos de Lemann. Eike Batista, cujo império desmoronou antes de se consolidar, e Joesley Batista, do grupo JBS Friboi, o gigante do setor de processamento de carnes, que até agora não caíram na malha fina da Lava Jato, também. Eles poderiam ter servido de exemplo para novos empreendedores no país. Em vez disso, preferiram apostar na via do crescimento mediante a obtenção de favores oficiais, como se alimentassem o desejo inconfesso de viver num capitalismo sem riscos. “Os interesses específicos são muito fortes”, diz o consultor Gesner Oliveira, da GO Associados, professor de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o órgão federal encarregado de prevenir abusos do poder econômico. “O ideal seria que houvesse mais concorrência. Toda vez que você tem mais concorrência, o próprio mercado se autofiscaliza.”
Mesmo com todas as dificuldades, é possível que um novo modelo econômico brote no país, sobre os escombros do capitalismo de compadrio do PT, mais por falta de opções que por convicção política. A crise econômica pode impor a necessidade de reformas. Os recursos disponíveis se esgotaram e as contas públicas estão no vermelho. “Os requisitos do ajuste fiscal vão diminuir o tamanho do setor público no Brasil”, diz o cientista político Christopher Garman, diretor para mercados emergentes da consultoria internacional Eurasia, especializada na avaliação de riscos políticos. “A Petrobras vai ficar menor, o BNDES vai ter outro papel e o governo vai ter de privatizar e vender ativos para fazer caixa.”
A grande questão, de acordo com Lisboa, é saber se o Brasil está disposto a adotar um sistema que acaba com as vantagens setoriais e corporativas ou as diminua drasticamente, tornando-as transparentes no orçamento e estabelecendo metas de desempenho e avaliação de resultados. “O Brasil vai aceitar uma agenda tributária que trate setores semelhantes de forma semelhante? Vai aceitar que não vai ter privilégio na concessão de crédito? Vai aceitar ter tarifas de importação semelhantes às dos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico)?”, pergunta. Se não aceitar para valer a impessoalidade do Estado perante os interesses privados, o perigo é que a “República de Compadres” se eternize.