domingo, 6 de dezembro de 2015

"As ideias, não os motivos", por Demétrio Magnoli

Folha de São Paulo


George H. Bush, o pai, não deve ser confundido com George W. Bush, o filho. No seu discurso de posse, em 1989, o primeiro Bush deplorou os políticos que questionam não apenas as ideias dos oponentes, mas seus motivos.

O pressuposto da democracia é a legitimidade daquele que discorda de mim.

A alma autoritária do chavismo revela-se pela qualificação de "vende-pátria" dirigida aos oposicionistas.

Luis Robayo/AFP
Militante da oposição usa faixa pedindo mudança de governo na Venezuela em comício em Caracas
Militante da oposição usa faixa pedindo mudança de governo na Venezuela em comício em Caracas

"Este país só pode ser governado pelos revolucionários", declarou Nicolás Maduro, ameaçando governar "junto com o povo e o Exército" caso a oposição triunfe na eleição parlamentar deste domingo (6).

Não são apenas palavras. A "revolução bolivariana" extraiu legitimidade de sucessivas vitórias eleitorais, mas tornou-se mais autoritária à medida em que se enraizava no aparelho de Estado.

Editoria de Arte/Folhapress

A Venezuela já não tem forças armadas nacionais, pois os comandos militares foram convertidos em tentáculos do partido dirigente.

Ao lado da polícia, submetida ao controle ideológico chavista, o governo criou uma "milícia bolivariana" e inúmeros "coletivos" armados. Um Judiciário reformado obedece às vontades do Executivo, encarcerando opositores em processos farsescos. O Conselho Eleitoral, dominado por fiéis, opera como agência governista.

"Na Venezuela tem democracia até demais!", exclamou Lula celebremente, apontando a frequência de eventos eleitorais.

Hoje, sob a névoa do colapso econômico, o chavismo engaja-se na supressão das últimas garantias de eleições livres e justas.

Os redesenhos dos distritos eleitorais garantem que só uma diferença avassaladora de votos dará à oposição uma maioria na Assembleia Nacional.

As prisões de líderes opositores como Leopoldo López e Antonio Ledezma, denunciadas pela ONU, a inabilitação eleitoral arbitrária de María Corina Machado, deputada mais votada do país, e os atos de violência dos "coletivos" marcaram a campanha com o selo da desigualdade.

A "revolução bolivariana" atraca no porto da ditadura.

A deriva autoritária encontrou amparo na Argentina e no Brasil. Contudo, rompendo o padrão, o novo presidente argentino, Mauricio Macri, prometeu solicitar a aplicação da cláusula democrática do Mercosul caso o chavismo fraude as eleições ou se recuse a libertar presos políticos.

Corretamente, o Brasil empenhou-se na suspensão do Paraguai do bloco quando o país vizinho promoveu um impeachment-relâmpago do presidente Lugo.

Mas, na direção oposta, o governo brasileiro articula a recusa do pedido argentino, o que representará uma violação dos princípios constitucionais de nossa política externa e a desmoralização da cláusula democrática do Mercosul.

De fato, Dilma isolará o Brasil na posição de protetor derradeiro de uma ditadura em estágio terminal.

O lulopetismo jamais engajou-se na destruição das instituições democráticas, mas compartilha com o regime chavista uma visceral aversão à pluralidade política. O teste da linguagem é sempre preciso.

Sob Lula e Dilma, a cena nacional foi intoxicada pelas sentenças dirigidas contra as motivações dos opositores ou de meros críticos do governo.

O oponente move as engrenagens de uma conspiração das elites, pratica o golpismo e veicula interesses antinacionais –é isso que ouvimos ao longo de 13 anos.

São versões amenizadas do "vende-pátria" do chavismo, cuja inspiração encontra-se no arsenal de insultos do castrismo, que selecionou o epíteto "gusanos" (vermes) para referir-se aos dissidentes.

Na pátria discursiva comum está a raiz da solidariedade prestada pelo governo brasileiro ao regime venezuelano. A postura estende-se à maioria dos nossos "intelectuais de esquerda", que se dividem entre o constrangido silêncio cúmplice e a entusiasmada defesa militante da ditadura chavista.

Como o governo, eles jamais aprenderam a contestar as ideias, não os motivos, dos oponentes.