sábado, 30 de janeiro de 2016

Nelson Rodrigues é editado em Portugal, França e Israel pela primeira vez

Mariana Filgueiras - O Globo

Após 35 anos de disputas entre herdeiros, nova decisão judicial facilita lançamentos


No romance “Meu amante de domingo” (Tinta da China), lançado em 2015 pela jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho, a protagonista é uma revisora portuguesa que, certo dia, a caminho do trabalho, em Lisboa, quebra o carro e encontra na estrada um mecânico que lhe conserta o motor — e as noites. Mas, pouco antes de a trama tomar fôlego, numa cena corriqueira, a personagem faz uma queixa curiosa: a ausência dos livros do escritor brasileiro Nelson Rodrigues no país (“Em Portugal não se acha muito Nelson Rodrigues, por embirração política ou desinteresse editorial, mesmo trinta e quatro anos depois da morte dele”, reclama).

O que a personagem não imaginava é que não era birra ou desinteresse. Se Nelson foi pouquíssimo editado fora do Brasil — há notícia de apenas um livro da peça “A falecida” em francês e de um “O beijo no asfalto” em inglês, além das montagens teatrais, um pouco mais fartas — , a culpa era do imbróglio entre seus herdeiros. Agora, após uma nova decisão judicial, os livros do autor finalmente ganham o mundo: acaba de sair uma edição em hebraico de “O beijo no asfalto”; estão sendo traduzidas na França as peças “A falecida” e “Perdoa-me por me traíres”; e sua obra em prosa será lançada pela primeira vez em Portugal.

Desde a morte de Nelson, em 1981, seus seis filhos, de três mulheres diferentes, disputavam seus bens, incluindo os direitos autorais sobre sua obra. A briga muitas vezes impedia tentativas de adaptação ou tradução de peças, mas principalmente da prosa do autor. O clima só começou a melhorar em 2012, ano do centenário do nascimento do escritor, quando pipocaram inúmeros projetos relacionados ao seu legado: na época, uma decisão judicial determinou que um representante respondesse por cada família, para dar celeridade aos pedidos. Mesmo assim, o mundo seguia sem livros de Nelson Rodrigues nas bibliotecas e livrarias fora do Brasil.

Em julho do ano passado, no entanto, uma decisão da juíza Nadia Maria de Souza Freijanes, da 11ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca do Rio, pôs fim ao entrave. Em notícia não divulgada pelas famílias, a jornalista Sonia Maria Rodrigues — que só foi reconhecida como filha legítima de Nelson em 1996, depois de testes de DNA — foi declarada única inventariante dos bens do pai (procurados pelo GLOBO, os representantes legais dos demais herdeiros não atenderam aos pedidos de entrevista).

— Ter uma pessoa só respondendo às demandas facilita a negociação dos projetos — conta Sonia. — Eu tenho tentado acolher rapidamente os pedidos, pois a obra do meu pai merece tratamento mais audacioso. Já saiu agora, no fim de 2015, a primeira edição de uma peça dele em hebraico, “O beijo no asfalto” (editora Merav Shaul), e acabei de assinar contrato com uma editora francesa (Les solitaires intempestifs) para a tradução de “A falecida” e “Perdoa-me por me traíres” na França. Mas a conquista mais importante, sem dúvida, foi fechar nesta semana com a Tinta da China, em Portugal, que vai lançar sua obra em prosa. A prosa dele independe de companhias teatrais para ser conhecida, o impacto é maior. “A vida como ela é...” pode ser uma marca tão forte quanto a Coca-Cola.

OBRA DIFUNDIDA EM BLOGS

Tão forte quanto a Coca-Cola talvez seja exagero, mas não há dúvidas de que a notícia é um grande acontecimento literário em Portugal. Até junho, serão publicadas pela primeira vez três obras de Nelson no país (para deleite ficcional da protagonista de “Meu amante de domingo”): o volume de contos “A vida como ela é...”, o livro de memórias “A menina sem estrela” e uma coletânea de crônicas publicadas em jornais.

— Parece inacreditável, mas Nelson Rodrigues só começou a ser falado em Portugal por volta de 2008, com a onda dos blogs literários. Antes, pouquíssima gente o conhecia. Nem mesmo seu teatro é sabido aqui. Foi quando comecei a tentar editar suas obras, o que sempre foi um sonho, mas era muito difícil conseguir a liberação com os herdeiros. O fato de Sonia poder decidir sozinha, agora, facilitou bastante — diz a dona da Tinta da China, Bárbara Bulhosa, que pretende organizar em Portugal, ainda neste ano, diversos eventos literários com especialistas na obra do autor, e planeja seguir publicando suas peças de teatro.

Assim, os portugueses terão a chance de conhecer personagens inesquecíveis, como o Sobrenatural de Almeida, que povoou muitas crônicas do autor, justificando gols inexplicáveis do seu time, o Fluminense. Ou a Dama do Lotação, que tanto roçou o imaginário coletivo brasileiro. Conhecerão os pecados e amores de Engraçadinha, e certamente dirão com a graça do seu sotaque ditos como “toda unanimidade é burra” ou “todo canalha é magro”, tiradas clássicas do autor.

Um dos raros profundos conhecedores da obra de Nelson em Portugal, o cronista e escritor Pedro Mexia será o responsável pela seleção das crônicas. Ele lembra das poucas vezes em que ouviu falar do autor no país:

— O nosso último presidente do Conselho de Ministros na época da ditadura de Salazar, Marcello Caetano, chamou-lhe certa vez de “imoralão”. Curiosamente estão os dois hoje enterrados lado a lado, num cemitério de Botafogo (com o fim da ditadura, Caetano exilou-se no Brasil) — brinca Pedro Mexia. — Também lembro-me que houve um artigo longo publicado por um cronista, Alfredo Barroso, que elogiava Nelson como um dos grandes prosadores da língua portuguesa, isso nos anos 1990, creio. Mas não era um nome conhecido. É uma grande notícia, uma grande alegria tê-lo editado aqui. Espero selecionar textos que apresentem aos leitores portugueses a agilidade, a graça e o espírito provocador do Nelson, sua prosa tão cativante, suas embirrações, as frases-estribilho, as personagens-tipo. É altura de citarmos Nelson Rodrigues a propósito e a despropósito.