sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

"À prova de fogo", por Ruy Castro

Folha de São Paulo


O princípio de incêndio na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, esta semana, destruindo centenas de filmes, faz pensar sobre a precariedade da arte. Não basta a esta ser volátil, fugaz e sujeita ao desprezo, esquecimento ou perseguição. Pode também desaparecer fisicamente, por algum acidente natural, dos quais o pior é o fogo. A ideia de bibliotecas, museus ou cinematecas ardendo é horrível. Significa milhares de sonhos sendo reduzidos a cinzas.

Não sei que filmes queimaram e não importa. Todo filme é importante e merece ser preservado. Foi o que aprendemos com o mestre dos conservadores de filmes, o francês Henri Langlois, ao esconder milhares de latas nos esgotos de Paris às vésperas da Ocupação alemã.

No passado, a destruição de um filme talvez fosse até mais grave que a de um livro. Um livro, mesmo com edição paga pelo autor e sendo este o mais humilde dos escritores, nunca saía com menos de 2.000 exemplares. Se eles se perdessem, sempre restaria o manuscrito original. De um filme, mesmo superproduções como "E o Vento Levou" (1939) e "Ben-Hur" (1959), não se tiravam nem mil para começar –e, isso, prevendo-se uma distribuição mundial. Imagine então a tiragem de filmes "difíceis", como "O Ano Passado em Marienbad" (1961), de Resnais, ou "Persona" (1966), de Bergman.

O mesmo exemplar de um livro pode ser lido centenas de vezes. Mas todo filme morre um pouco a cada vez que passa pelo projetor –risca, quebra, perde pedaços– e nem sempre se sabe onde estão os negativos que permitiriam tirar novas cópias. Além disso, filmes tendem à combustão –qualquer calor ou faísca, e lá se vai o nitrato em chamas.

Ou ia. Com os novos filmes digitais –imateriais, sem película, sem química–, as cinematecas do futuro serão à prova de fogo. Resta ver se precisarão existir. Vão guardar o quê?