sábado, 20 de fevereiro de 2016

"Os sem-celular", por Ruy Castro

Folha de São Paulo


O ex-presidente Lula, segundo o Instituto idem, não tem celular. Eu também não. Nunca tive e, juro, nunca me fez falta. Mas sei bem das maravilhas que proporciona e às vezes me pergunto como posso ser tão feliz sem ele.

Aliás, sei, sim. Basta continuar vivendo como em 1990, quando ele não existia. Se vou à rua, antes de sair dou todos os telefonemas de que preciso –não deixo nada pendente. Se me ligarem e eu estiver fora, e se for algo importante, ligarão de novo. Se ocorrer um imprevisto que me obrigue a telefonar de onde estiver –nunca ocorre–, há sempre um telefone em algum canto, pronto para ser usado. 

Em último caso, posso recorrer ao português do botequim.

Tenho consciência de que, em breve, vou me tornar inviável. Enquanto o mundo dispara SMSs e WhatsApps para se comunicar, ainda deixo mensagens de voz em secretárias eletrônicas, mesmo sabendo que já não são escutadas.

Para espiar as horas, continuo usando relógio de pulso. Se, de repente, tiver uma ânsia irresistível de escrever alguma coisa ou precisar anotar um endereço ou número de telefone, tiro do bolso um lápis, cuja ponta lambo, e uma cadernetinha. 
Se preciso chamar um táxi, não apelo para o EasyTaxi ou 99 –saio e estico o dedo.

Se o Flamengo for jogar e eu quiser acompanhar, levo um radinho de pilha sintonizado no José Carlos Araújo. E não há hipótese de eu dar as costas a um monumento, seja o Taj Mahal ou a Kim Kardashian, para tirar uma "selfie" –prefiro contemplá-los e guardá-los nas fatigadas retinas. Enfim, a falta de um celular me obriga a uma série de contorcionismos para continuar minimamente funcional.

Imagino que o sem-celular Lula também se submeta a essa mão de obra. Daí a inutilidade daquela antena de 1 milhão de reais que instalaram nos fundos do sítio que não lhe pertence em Atibaia.