quarta-feira, 29 de junho de 2016

João Pereira Coutinho: "Reflexões sobre o 'Brexit'"

Folha de São Paulo


1. Escrevi na semana retrasada que esperava pela vitória do "sim" no "Brexit". Aconteceu. E amigos preocupados com a minha sanidade perguntaram em coro: "Quando te curas de tanta anglofilia?"
Respondo em defesa da honra: eu não "sofro" de anglofilia. Eu aprendo com os anglo-saxônicos. Existe uma diferença. "Aprender", no contexto, é repetir a célebre observação da historiadora Gertrude Himmelfarb de que o Reino Unido passou por todas as revoluções da modernidade –industrial, econômica, social, cultural etc.– sem nunca ter recorrido à Revolução (com maiúscula).
Modestamente, eu creio que existe algo a aprender com uma cultura política que não tem a vergonhosa e sanguinária folha de serviço da Europa continental no século 20. O Gulag, Auschwitz e até o pequeno Salazar nunca foram a minha praia.

2. Sou europeu até ao tutano. Considero a União Europeia uma das mais preciosas criações políticas do pós-guerra. Sempre fui crítico do excessivo (e, como se vê, autodestrutivo) centralismo de Bruxelas.
Imagino que essas três frases provoquem confusão no auditório (um problema que, lamento, é do auditório). Por incrível que possa parecer, eu não confundo a Europa com a União Europeia. E, para voltar à anglofilia, aqui vai: sempre me senti bem na "pérfida Albion"; mas só me sinto verdadeiramente em casa em Lisboa, Florença ou Budapeste.
Não troco os cafés de Paris por nenhum pub inglês. Rio alto com Evelyn Waugh, mas sei que Proust é outra história. Turner é um impressionista "avant la lettre"; mas o Impressionismo francês não tem termo de comparação. Benjamin Britten ou Vaughan Williams são compositores estimáveis; mas o que é isso quando comparado com Bach, Mozart ou Wagner?
E, filosoficamente falando, admito que a filosofia ocidental seja uma nota de pé de página de Platão. Como dizia um filósofo (britânico).

3. A mídia reagiu ao "Brexit" com estupefacção, horror, desmaios. Isso mostra duas coisas. Em primeiro lugar, a impressionante preparação intelectual que reina em muitas redações.
Mas mostra, sobretudo, como a única ideologia dominante do século 21 é mesmo o "globalismo".
Por "globalismo", entenda-se: a crença de que, para problemas globais, é preciso um governo global. O que implica, naturalmente, que os anacrônicos Estados-nação, com as suas limitadas "democracias liberais", não fazem mais sentido.
John Fonte escreveu um importante livro sobre o tema ("Sovereignty or Submission"), em que relembra que o globalismo sempre fez parte da história do pensamento político. Do poeta Dante ao filósofo Kant, de Victor Hugo a Albert Einstein, são vários os nomes para os quais o mundo é um assunto demasiado importante para ser deixado aos diferentes Estados soberanos.
Fatalmente, o pensamento globalista não perde tempo com uma evidência histórica: não há nada mais perigoso do que alimentar nos povos a certeza de que o destino já não repousa nas suas mãos.

4. Como explicar o "Brexit"? Lendo a histeria publicada, parece que o "Brexit" foi responsabilidade exclusiva de uma extrema direita xenófoba, ignorante e populista.
Sim, essa extrema direita esteve presente com suas boçalidades racistas. Mas, ironicamente, quem decidiu o referendo foram os velhos esquerdistas do Labour –do norte e centro do país–, que votaram contra o próprio líder do partido, Jeremy Corbyn (ele próprio um vociferante eurocético no passado).
Como é evidente, dispenso a companhia dessa turma. E prefiro escutar, e concordar, com autores de direita ou esquerda que sempre questionaram o modelo "globalista" para o Reino Unido quando a história do país está indissociavelmente ligada com a sua tradição de liberdade, soberania e "rule of law".

5. Jean-Claude Juncker, o atual presidente da Comissão Europeia, desabafou em tempos que o problema da União Europeia era ter "europeus em part-time". Entendo a angústia de Juncker. E é provável que, perante o divórcio inglês, exista a tentação de forçar os restantes povos do continente a uma entrega total ao "projeto europeu".

Dizer que essas "engenharias sociais" nunca funcionaram é um cômico eufemismo. Melhor escrever que a União Europeia só sobreviverá (e eu espero que sobreviva) se aceitar europeus em "part-time", permitindo que os países tenham diferentes níveis de integração no projeto, de acordo com as suas vontades e necessidades. Soberanas.

Salvar a União Europeia só depende da União Europeia.