segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Ruy Castro: "Condenados à extinção"

Folha de São Paulo


Folhapress
Máquina de escrever na antiga Redação da Folha, 1975
Máquina de escrever na antiga Redação da Folha, 1975


Sempre foi assim. Um dia, o sujeito olhava em volta e se dava conta de que, enquanto ele estava distraído, certas funções tinham deixado de existir. 

Aconteceu, por exemplo, quando as cidades brasileiras instituíram minimamente um sistema de esgotos. Isso eliminou a humilhante tarefa, reservada aos escravos, de recolher os dejetos nas casas, transportá-los em balaios pelas ruas e despejá-los no mar. Já a luz elétrica aposentou o acendedor de lampiões. E o automóvel tornou inútil o aguadeiro - aquele que dava água aos cavalos.

Os leiteiros, tão populares há 50 anos com suas garrafas, extinguiram-se. O leite passou a vir em caixas nos supermercados - além disso, exceto eu, ninguém mais parece tomá-lo, nem os gatos. Os datilógrafos também sumiram - no passado, só algumas pessoas sabiam escrever à máquina; com o computador, todo mundo já nasce digitando. Outra vítima do computador foi o linotipista, aquele que "compunha" os textos nas gráficas - hoje, qualquer um é o seu próprio linotipista.

Leio no "Globo" sobre algumas profissões que em breve desaparecerão - operador de telemarketing, consertador de relógio, caixa de banco, árbitro de futebol ou de vôlei, corretor de imóveis, trabalhador rural - e me coloco no lugar das pessoas que ainda hoje as exercem. Como será estar profissionalmente condenado à extinção e saber disso?

Em compensação, observo que outras atividades parecem mais prósperas do que nunca: passeador de cachorro, cantor evangélico, segurança de celebridade, personal trainer, manicure a domicílio, D.J., grafiteiro, tatuador. Como se vê, nem tudo está perdido.

Mas o que gosto mesmo é de ouvir o vendedor de vassouras que até hoje passa sob a minha janela no Leblon, gritando "Olha a vassoura, olha o vassoureiro!". Soa delicadamente a 1916. Ou a 1816.