sábado, 19 de novembro de 2016

Dorrit Harazim: "O salário do governante"

O Globo

Os fundadores da nova república no século XVIII consideraram vital que o cargo de presidente dos EUA fosse remunerado


Linda Greenhouse é a mais conceituada jornalista americana da atualidade especializada em assuntos constitucionais. Ela destrincha como poucos o emaranhado jurídico do país e não é por acaso que sua cobertura dos trabalhos da Suprema Corte dos Estados Unidos lhe rendeu um Prêmio Pulitzer em 1998.

Greenhouse atravessou 2016 abstendo-se de escrever sobre o embate eleitoral — a sua seara é a lei, não a política. Somente agora, no final da campanha, ela saiu do casulo.

“O estado de direito não é fácil de ser reduzido a uma definição”, escreveu a colunista do “New York Times”. “Mas reconhecemos quando o vemos. Trata-se ao mesmo tempo de um processo e um fim — ele é o produto não de uma série de mandatos, mas de hábitos arraigados, de uma ideia coletiva, de expectativas comuns quanto à maneira da sociedade organizar suas questões e resolver seus conflitos. Sabemos que leis, sozinhas, não bastam — no papel, alguns dos governantes mais odiosos eram corretos”.

Ela ensina: “O estado de direito proporciona a confiança de que o que é verdade hoje será verdade amanhã também. Ele é a base da resiliência para absorver os choques que todo sistema político enfrenta. E resiliência leva tempo para se formar. A ‘União’ Europeia, por exemplo, que ora vê suas estruturas abaladas pelas tensões do século XXI, é uma construção de pouco mais de meio século. Nos Estados Unidos pensávamos que tínhamos, com folga, todo o tempo do mundo pela frente. Talvez não o tenhamos mais”.

Numa primeira entrevista à TV após emergir vitorioso das urnas, Donald Trump foi perguntado se pretendia levar adiante a ameaça eleitoral de nomear um procurador especial para indiciar Hillary Clinton pelo uso indevido de um servidor privado quando secretária de Estado.

Sua resposta deliberadamente imprecisa deve ter arrepiado Linda Greenhouse: “Não quero feri-los (os Clinton), são boa gente”, disse Trump, prometendo ser mais claro e preciso quando voltasse ao programa.

A resposta do presidente eleito permite qualquer leitura. Inclusive a de que, para ele, o Judiciário é mero instrumento da Presidência para ser usado ora com malvadeza, ora indulgência.

Trump também reiterou que abrirá mão do salário anual de US$ 400 mil (cerca de R$ 1,3 milhão), reservado por lei a todo ocupante da Casa Branca. Ele pode até dar-se ao luxo público de embolsar apenas um simbólico dólar por cada mês de serviço. Porém, não terá como escapar de receber o restante do que lhe é devido. Assim foi definido mais de dois séculos atrás.

Mesmo que ele decida jogar o que não quer no Rio Potomac, doar os milhões excedentes a instituições ou devolvê-los ao Tesouro, Trump terá, primeiro, de receber a totalidade estipulada por lei, para só então poder se desbaratar do quanto quiser. E, mesmo assim, terá de declarar o valor total recebido em sua declaração de renda, para então fazer as deduções permitidas em caso de doação. (Apenas os prêmios Nobel, Pulitzer e similares ficam totalmente de fora do Fisco americano).

Os fundadores da nova república no século XVIII consideraram vital que o cargo de presidente fosse remunerado. Como escreveu o cientista político Rob Goodman na “Político”, esse princípio cimentado em lei visava ao interesse público, não do ocupante da cadeira: tratava-se de sinalizar que um presidente de Estado democrático trabalharia a serviço dos cidadãos, e não o contrário, e lhe prestaria contas.

E foi por isso que o abastado George Washington viu-se impedido de chefiar a nação da mesma forma que comandara o exército continental na Revolução Americana — sem remuneração, apenas pelo ideal de servir. Contrariado, o primeiro presidente dos Estados Unidos dobrou-se ao voto do Congresso e aceitou receber US$ 25 mil anuais pelo exercício da função. “O poder sobre o sustento de um homem é o poder sobre a sua vontade”, argumentou o founding father Alexander Hamilton.

Prevaleceu o raciocínio de que futuros presidentes menos honrados (e menos ricos) do que George Washington, se não remunerados, poderiam tornar-se mais vulneráveis à corrupção, à coerção ou à tentação de vender medidas políticas em troca de mimos.

Ademais, transformando a presidência em trabalho profissional assalariado para além de ideais e dever cívico, visou-se ampliar a possibilidade de cidadãos sem fortunas pessoais virem a disputar o cargo público mais nobre do país.

Dos 44 que, desde então, já ocuparam a Casa Branca, dois optaram por doar o salário para instituições de caridade: o quaker Herbert Hoover e John Kennedy. Já Barack Obama, que terminou de quitar sua dívida estudantil só aos 43 anos, apenas cinco antes de assumir a Presidência em 2009, devolveu 5% do salário ao Tesouro por ocasião de uma das muitas crises que ameaçou a paralisação da máquina governamental de seu governo.

No caso de Trump, dono de uma fortuna pessoal estimada em US$ 3,7 bilhões e único candidato desta eleição a não liberar suas declarações de Imposto de Renda, a bravata de ser rico demais para ser corrupto ou roubar soou mal. Pelo menos para ouvidos brasileiros.