terça-feira, 29 de novembro de 2016

"Em 'Sully', Clint Eastwood mostra que a imperfeição pode ser uma salvação", por João Pereira Coutinho

Folha de São Paulo


Em janeiro de 2009, um avião pousou de emergência no rio Hudson. Quem não se lembra da história? O nome do piloto era Sully Sullenberger e as 155 pessoas a bordo foram salvas por uma manobra impossível, perigosa, milagrosa.

Um amigo brasileiro enviou-me um e-mail em que comentava: não é impressionante que a presidência de George W. Bush tenha começado com aviões de morte e termine agora com um avião de vida?

Bem visto. Eis a diferença entre o Ocidente liberal e o fanatismo islamita: eles amam a morte; nós fazemos tudo para preservar a vida. Sully virou herói e eu, confesso, nunca mais perdi tempo com o caso. A lenda estava criada.

Binho Barreto/Folhapress
Ilustração Coutinho ilus 29.nov

Agora, Clint Eastwood revisita a lenda para contar o que aconteceu depois do milagre: uma investigação, uma séria investigação às competências do capitão Sully Sullenberger. Ele salvara 155 pessoas, ninguém contestava. Mas foi mesmo necessário pousar no Hudson? Ou o gesto revelou uma imprudência criminosa, sobretudo quando havia opções terrenas mais sensatas?

Fizeram-se simulações de computador. E a máquina deu o seu veredicto: era possível ter evitado as águas do rio e pousar nos aeroportos de LaGuardia ou Teterboro. O próprio Sully começou a duvidar das suas competências. Todos falhamos. Será que ele falhou?

"Sully: O Herói do Rio Hudson", filme que estreia na próxima quinta-feira, é talvez o mais conservador dos filmes de Eastwood. Filosoficamente conservador, digo, e por causa dele reli um dos ensaios que me formaram a cabeça.

Foi escrito em 1947 por Michael Oakeshott (1901""1990) e o título é "Rationalism in Politics". Argumenta Oakeshott que, a partir do Renascimento, o "racionalismo" tornou-se a mais influente moda intelectual da Europa. Por "racionalismo", entenda-se: uma crença na razão dos homens como guia único, supremo, da conduta humana.

Para o racionalista, o conhecimento que importa não vem da tradição, da experiência, da "vida vivida". O conhecimento é sempre um conhecimento técnico, ou o conhecimento de uma técnica, que pode ser resumido ou aprendido em livros ou doutrinas.

Oakeshott argumentava, com uma inteligência serena, que o conhecimento humano não pode ser resumido a um mero "conhecimento técnico". O conhecimento humano depende sempre de um conhecimento técnico e prático, mesmo que os ensinamentos da prática não possam ser apresentados com rigor cartesiano.

Em política, por exemplo, não basta conhecer macroeconomia. É preciso estar atento a uma história, uma tradição –ao "caráter" de um povo, por mais intangível (ou "irracional", dirá o racionalista) que isso possa parecer.

Pessoalmente falando, o ensaio de Oakeshott impediu-me de levar a sério qualquer ideologia que prometa resultados perfeitos de acordo com uma receita qualquer. Isso é válido para ideologias de esquerda ou de direita que propõem as suas soluções independentemente da realidade. Não há "livros sagrados" em política porque a experiência humana é sempre mais vasta do que as fantasias dos teóricos.

Clint Eastwood revisita a mesma dicotomia de Oakeshott para contar a história –e a decisão– de Sully Sullenberger. O avião perde os seus motores na colisão com aves; o copiloto, sintomaticamente, procura a resposta no manual de instruções; mas é Sully quem, conhecendo o manual, entende que ele não basta para salvar o dia.

E, se os computadores dizem que ele está errado, ele sabe que não está –uma sabedoria que não se encontra em nenhum livro porque a experiência humana não é uma equação matemática.

As máquinas são ideais para lidar com situações ideais. Infelizmente, o mundo comum é perpetuamente devassado por contingências, ambiguidades, angústias mas também súbitas iluminações que só os seres humanos, e não as máquinas, são capazes de entender.

Quando li Michael Oakeshott pela primeira vez, encontrei um filósofo que, contra toda a arrogância da modernidade, mostrava como a nossa imperfeição pode ser, à sua maneira, uma forma de salvação. O ensaio era, paradoxalmente, uma lição de humildade e uma apologia da grandeza humana.

Clint Eastwood, aos 86 anos, traduziu para imagens a mais séria lição da minha vida.