quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

"O déficit de Trump", editorial de O Globo



É um mito pós-crise financeira que governos conservadores de orientação pró-austeridade sempre apoiam prudência fiscal, ao passo que os progressistas de tendência distributiva veem grandes déficits como a maior boca-livre do mundo. Esta perspectiva simplista, embora possa conter um grão de verdade, não capta a verdadeira essência da política econômica dos déficits.

O fato é que sempre que um partido tem o firme controle do governo, possui igualmente um poderoso incentivo para tomar emprestado para financiar suas prioridades, sabendo que não será necessariamente ele quem vai pagar a conta. Assim, pode-se esperar do governo do presidente eleito Donald Trump, conservador ou não, um uso agressivo de déficits orçamentários para financiar suas prioridades em relação a tributos e gastos.

A maneira mais precisa de avaliar os déficits fiscais governamentais em democracias foi proposta no fim dos anos 1980 pelos acadêmicos italianos Aberto Alesina e Guido Tabellini, mais ou menos simultaneamente com dois suecos, Torsten Persson e Lars Svensson.

Embora suas abordagens difiram nos detalhes, a ideia básica é a mesma: dar dinheiro aos amigos enquanto isso for possível. Se faltar dinheiro mais adiante, quando a oposição chegar ao poder, bem... azar.

Basta lembrar a história econômica recente dos EUA para confirmar o insight do modelo italiano/sueco — e ver o quão absurdas são as afirmações de que os republicanos sempre buscaram equilibrar o Orçamento, enquanto os democratas sempre tentaram gastar além da capacidade do país. Nos anos 1990, o herói conservador Ronald Reagan estava disposto a tolerar enormes déficits para financiar seu ambicioso plano de corte de impostos, e ele fez isso numa época em que não era barato tomar emprestado.

No início dos anos 2000, outro presidente republicano, George W. Bush, basicamente seguiu o modelo de Reagan, mais uma vez cortando impostos e explodindo os déficits. Em 2012, no auge do impasse entre o Congresso controlado pelos republicanos e o presidente democrata Barack Obama em relação a déficits e a dívida nacional, o candidato presidencial republicano Mitt Romney anunciou um plano econômico que incluía estarrecedores déficits para financiar cortes de impostos e a elevação de gastos militares.

No outro lado deste espectro, o presidente democrata Bill Clinton, durante o que muitos economistas acadêmicos consideram ter sido uma presidência de extremo sucesso, colocou o governo numa situação de superávit. De fato, no fim dos anos 1990, alguns pesquisadores chegaram a especular como os mercados internacionais funcionariam se o governo americano gradualmente eliminasse toda a sua dívida. Bush, com sua sucessora política de corte de impostos e guerras sem fundamento, garantiu que isso nunca se tornasse um problema.

O que, então, evita que os déficits cresçam em espiral à proporção que partidos se alternam no poder e tomem emprestado para ajudar seus aliados? Em democracias altamente funcionais como as dos EUA ou do Reino Unido, há suficiente memória coletiva dos problemas causados pelo alto endividamento para permitir algum apoio à redução periódica das relações dívida/PIB. Mas, mesmo nos EUA e no Reino Unido, déficits fiscais não são formas estéreis e neutras de estímulo econômico, como nas aulas sobre o modelo keynesiano. Em vez disso, os déficits são quase sempre o produto de ferozes lutas internas sobre prioridades fiscais.

Claro, num mundo em constante transformação, os custos de se ter um alto endividamento pode mudar com o tempo. Após cair durante décadas, as taxas de juros estão subitamente começando a subir.

Diferentes atitudes em relação a risco são um fator central na eterna controvérsia sobre qual o patamar ideal de estímulo. Até recentemente, muitos analistas econômicos de esquerda defenderam grandes estímulos fiscais nos EUA, embora pareçam ter mudado de posição da noite para o dia (a noite em que Trump foi eleito, para ser mais preciso). 

Ninguém sabe ao certo qual o ponto de equilíbrio entre endividamento e estímulo.

O vencedor do prêmio Nobel Thomas Sargent e outros argumentaram recentemente que o nível ideal de endividamento dos EUA seria bem próximo a zero, embora ele não recomende tentar chegar a esse ponto no curto prazo, uma vez que o endividamento do governo americano está hoje acima de 100% do PIB. A recomendação de Sargent contradiz a visão (defendida recentemente na revista “Economist”) de que, em vez de estabilizar o endividamento, todos os países avançados deveriam se mirar no Japão (onde a dívida líquida é superior a 140% do PIB, a maior relação entre as economias desenvolvidas).

O que importa não é apenas o nível do endividamento, mas igualmente o quanto ele é administrável. Alguns parecem pensar que a discussão sobre como a estrutura de maturidade da dívida do governo deve ser administrada é um disfarce para orçamentos apertados e austeridade. Mas se as taxas de juros dispararem na era Trump, o governo dos EUA vai desejar ter optado por menos endividamento de curto prazo e mais de longo prazo.

Se uma presidência com Trump permite grandes endividamentos — junto com crescimento mais acelerado e mais inflação — um abrupto aumento das taxas de juros poderá ocorrer, colocando forte pressão em pontos fracos em todo o mundo (por exemplo, no endividamento público italiano) e sobre endividamento corporativo em mercados emergentes. Muitos países vão se beneficiar do crescimento dos EUA (se Trump não implementar simultaneamente barreiras comerciais). Mas qualquer um que esteja contando com a permanência das taxas de juros em baixos patamares porque os governos conservadores são aversos a déficits vai precisar de uma lição de História.

Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, é professor de Economia e Política Pública na Universidade de Harvard

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