domingo, 22 de janeiro de 2017

‘My Way or the Highway’: o estilo dos primeiros dias de Trump

São tantos acontecimentos desde a posse que já dá até para fazer uma lista de fatos reais, simbólicos e imaginários sob o novo governo americano


Paul Anka deveria ter cantado no primeiro baile do dia da posse de Donald Trump. O cantor, lembrado apenas por quem tem alguma referência dos anos 60, inventou uma desculpa para não homenagear o amigo com uma versão especial de My Way.
Seria interessante ver um canadense de origem árabe (pai sírio, mãe libanesa, ambos cristãos ortodoxos) mudar a letra de uma canção francesa que ele famosamente adaptou para um concorrente, Frank Sinatra.
O boicote do mundo artístico contra Trump funcionou até com Paul Anka, o que não deixa de ter algum simbolismo. Mas não faltaram acontecimentos nessa inauguração da era Trump para deixar os Estados Unidos e o mundo boquiabertos. Alguns deles:
1- PATRIOTISMO
Uma palavra desaparecida da linguagem política do mundo avançado ressurgiu bombasticamente no discurso de posse. Não apenas como uma virtude louvável, mas como o material do tecido social que unifica o país.
Todo presidente americano que toma posse faz apelo aos mitos nacionais, à tal “cidade iluminada no alto do morro” e outras concessões a narrativas de sucesso que podem ser aplicadas tanto a jogos de futebol quanto à união nacional.
“Quando se abre o coração ao patriotismo, não há lugar para o preconceito”, diz um dos trechos mais intrigantes do discurso, escrito ao estilo de Steve Bannon, ex-diretor do site Breitbart e agora o mais importante assessor político de Trump.
O conceito reapareceu, numa referência a uma ideia vigente entre os militares: “Quer sejamos negros, brancos ou morenos, todos vertemos o mesmo sangue vermelho dos patriotas”.
A ideia de que as Forças Armadas são um exemplo de igualdade étnica e racial também apareceu num depoimento do general reformado John Kelly, nomeado para chefiar o Departamento de Segurança Nacional.
Uma das perguntas dos senadores da oposição democrata era como garantir que militares sem cidadania americana sejam acatados. Kelly respondeu que o mundo militar “pareceria estranho a muitos americanos”. Nele, vigora a meritocracia, os conceitos politicamente corretos são completamente rejeitados e “ninguém dá a mínima para a cor da sua pele, para qual religião você segue – e se tem religião – , qual o partido em que vota”.
Depois de passar na seleção e nos cursos de treinamento, “não existe diferença” entre quem tem cidadania e quem não tem.
Kelly também deu uma resposta à la Rhett Butler, de E o Vento Levou, à senadora preocupada com a situação de gays e todas as outras variações nas Forças Armadas. “Francamente, senadora, nunca liguei a mínima para o que fazem dois adultos de comum acordo e com quem vão para a cama.” Já vai para a lista de melhores respostas de todos os tempos.
2- NARCISISMO
Ninguém com um mínimo de conhecimento de causa esperaria um Trump mais “presidencial” e contido. Os americanos usam a expressão “my way or the highway” para pessoas mandonas. É do meu jeito e está acabado; quem não gostar, que cai fora, foi e continua a ser o mantra de Trump.
Mas fazer tudo isso e mais um pouco numa visita de reconciliação à sede da CIA foi uma manobra que surpreendeu até os trumpistas mais empolgados. Trump atribuiu todos os seus atritos com o serviço de inteligência à guerra que trava com a mídia, chamou os jornalistas de “pessoas mais desonestas do mundo”, exagerou o número do público na sua posse e brincou que todos os presentes à reunião “votaram em mim”. Foi aplaudidíssimo.
3- JACKSON CONTRA LINDBERGH
Parece uma discussão de políticos do Brasil, onde é comum o uso de sobrenomes estrangeiros como nomes próprios, mas na verdade compõe o debate ideológico do momento.
É difícil encontrar pensadores políticos e até comentaristas jornalísticos que defendam Trump com argumentos intelectualmente sólidos, eleito contra a vontade da maioria do establishment conservador.
Entre as exceções, é comum ver comparações entre Trump e Andrew Jackson, o herói da fundação dos Estados Unidos e general da guerra de 1812, presidente de 1829 a 1837, cuja trajetória continua a ser apaixonadamente discutida por historiadores.
A comparação decorre do componente populista de Jackson, que fez campanha contra as elites da época (e até o antecessor do FED, o banco central americano, que continua odiado até hoje pelos libertários).
Qualificado de “autocrata democrático”, Jackson era um autodidata apelidado de “jackass” pelos adversários – transformou o jumento no símbolo de seu novo partido, o Democrata.
Quando foi homenageado com um doutorado honorário em Harvard, respondeu aos pomposos discursos em latim (e aos inimigos que esperavam vê-lo fazer papel de bobo) com um dos mais curtos e engraçados agradecimentos de todos os tempos: “E pluribus unum, meus amigos. Sine qua nom!”. Gastou todo seu latim com o lema dos Estados Unidos e uma das expressões mais conhecidas na língua viva dos políticos malandros, no bom sentido.
O nome histórico invocado pelos adversários de Trump é o de Charles Lindbergh, o aviador belo, rico e heroico, vitimado pelo sequestro e assassinato de seu filho pequeno, qualificado na época de o “crime mais importante da história desde a Paixão” de Cristo.
Lindbergh também foi a figura mais conhecida do movimento isolacionista chamado América em Primeiro Lugar – exatamente a expressão que definiu a campanha e o discurso de posse de Donald Trump. O objetivo era impedir que os Estados Unidos entrassem no teatro europeu da II Guerra Mundial e resvalava para o fascismo em alguns aspectos.
Um jovem John Kennedy, futuro herói de guerra e presidente, filho de um famoso isolacionista que por coincidência era embaixador na Inglaterra, contribuiu com 100 dólares para o America First. Outro futuro presidente, Gerald Ford, foi militante do movimento, dissolvido três dias depois do ataque japonês a Pear Harbor que levou os Estados Unidos à guerra e à vitória.
Por causa da expressão “América em primeiro lugar”, a mais importante do discurso de posse, o jornalista Chris Matthews foi além dos paralelos com Lindbergh e disse que as palavras de Trump tinham um tom “hitlerista”. Serve como exemplo dos exageros retóricos que Trump provoca – e explora. Mathews é o mesmo que já disse que sentia “arrepios” de emoção ao ouvir Barack Obama.
4- GORRINHOS E INCENDIÁRIOS
Os protestos no dia da posse, ao estilo Black Bloc, foram um fracasso de público e repercussão. A marcha das mulheres no dia seguinte foi um sucesso, mesmo com o exagero habitual sobre o número de participantes.
O símbolo foi um gorro cor-de-rosa com orelhas de gatinha, uma palavra que tem duplo sentido em inglês (e aparece na infame gravação em que Trump diz poder agarrar mulheres pela parte mais íntima do corpo feminino, por ser famoso).
Manifestações grandes, apaixonadas e pacíficas sempre têm um efeito multiplicador. Ainda uma que parecia tapete vermelho do Oscar, com Julia Roberts, Charlize Theron e outras celebridades.
Papelão foi o discurso “forte” (ah, como narradores fracos têm medo de relatar fatos sobre seus famosos preferidos) de Madonna. Entre outras maluquices, a cantora, protegida por seus guarda-costas, disse que “a Revolução começa aqui”. Ah, sim, também contou ter pensado na possibilidade de “explodir a Casa Branca” por causa de Trump. Ele deve ter ficado morrendo de medo.
Apesar dos destemperos, a turma do gorrinho ainda está ganhando dos incendiários de latas de lixo.
5- DECORAÇÃO
Todo presidente que assume vai mudando os ambientes públicos e privados da Casa Branca segundo seu estilo. Trump trocou o tapete do Salão Oval, o despacho oficial, e mandou colocar cortinas douradas em lugar das vermelhas usadas por Barack Obama.
Como havia prometido, devolveu um busto de Winston Churchill a um lugar de honra no gabinete. O descuido de um jornalista, que afirmou não ter visto a escultura de Martin Luther King usada por Obama, serviu para uma saraivada de críticas à imprensa em geral do novo porta-voz, Sean Spicer. Um jornalista da Fox já brincou com os colegas que agora eles vão sentir na pele o que viveu o pessoal do canal continuamente criticado por Obama durante oito anos.
Redecorar a Casa Branca, que tem a característica de ser local de trabalho e residência do presidente ao mesmo tempo, é uma alegria (ou um castigo) reservada às primeiras-damas.
Michelle Obama teve a orientação do decorador Michael Smith. Ele ficou tão íntimo da família que o casal Obama foi passar um período de recolhimento numa das casas que Smith tem com o marido, James Costos, ex-embaixador americano na Espanha. A casa fica em Palm Springs, um reduto de milionários.
Adversários de Trump já estão prevendo que Melania vai transformar a Casa Branca numa versão cafona do estilo Versalhes fake que vigora no triplex do casal em Nova York. Contradizendo os inimiguinhos, no mundo da política e da moda (este, mais cheio ainda de serpentes), Melania até agora usou um figurino à prova de críticas.
O conjunto de vestido e casaquinho azul, com luvas e sapatos um tom abaixo, usados no dia da posse, poderia ser um pastiche de Jacqueline Kennedy, mas foi um espetáculo de perfeição. O vestido de baile branco com cinto vermelho, que sussurrava as vantagens e os códigos secretos da alta costura, derrubou os prognósticos de novo-riquismo exibicionista.
Será que Trump poderia contrariar as expectativas pessimistas tanto quanto as roupas de Melania?