sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

"Um pouco da aberração brasileira", por Vinicius Torres Freire

Moacyr Lopes Junior/Folhapress
ORG XMIT: 570001_0.tif Pobreza: caminhão do Carrefour com alimentos vencidos chega a lixão em São Vicente (SP) e é cercado por moradores de favela Sambaiatuba, que vivem do depósito.
Caminhão com alimentos vencidos chega a lixão em São Vicente (SP)


O DESEJO de escapar do desastre nos faz deixar de lado o pensamento dos motivos profundos da "maior recessão da história". Varremos muito lixo para debaixo do tapete.

Lixo velho, lixo de categoria mundial. Em 36 anos, passamos por três recessões enormes casadas a crises políticas graves, com uma hiperinflação pelo meio. Nas últimas três décadas, é difícil achar caso de país comparável ou razoavelmente civilizado que tenha passado por retrocesso equivalente ao da economia brasileira no último triênio.

A economia encolheu 3,6% no ano passado, por aí. A redução da renda (PIB) per capita no triênio 2014-16 foi de quase 9,5%. Regredimos a 2010.

Dadas as previsões de crescimento, retornaríamos ao nível de renda per capita de 2013, o mais alto da história, só em 2023. É inaceitável, é um perigo para a democracia.

Uma recessão da renda per capita tão grande quanto essa não parece incomum pelo mundo dos últimos 30 anos, à primeira vista. De 214 países, 91 tiveram recessões maiores em um triênio (de PIB per capita).

Mas não é bem assim. Desse grupo, 23% eram países que entraram em colapso nos anos 1990 devido ao fim de seus regimes comunistas, onde, de todo modo, a medida do PIB era ficção. As megarrecessões ocorreram durante guerras, guerras civis (ou quase isso) ou guerra crítica na vizinhança em 34% dos países.

Cerca de 20% dos países são tão pequenos que não se prestam a comparações: Vanuatu, Kiribati, Aruba, Andorra etc. Em outros 9%, o desastre ocorreu devido à dependência estrita e ao colapso do preço do petróleo, ou a desastres naturais.

Sobra o caso dos vizinhos, Argentina, que levou consigo Uruguai e Paraguai na depressão do começo dos anos 2000. O Peru da quase guerra civil e da hiperinflação dos anos 1980/1990. A Venezuela, que dispensa apresentações.

No mundo rico, há a Grécia e a Irlanda arrasadas na crise que começou em 2008; o curioso caso da depressão finlandesa do começo dos anos 1990.

No mais, nota-se o tumulto da Indonésia da crise asiática de 1997-98. O Zimbábue, uma tirania doida. A crise do marxismo-beninismo no Benin. Madagáscar.

Talvez se apresentem argumentos para assemelhar o caso do Brasil ao de países desta lista ou em outras situações, de recessões menores, porém. No mínimo, no entanto, a própria ideia da comparação deve contribuir para avacalhar nossas pretensões de ordem, progresso, civilização e país do futuro.

Saímos mal na foto até quando se levam em conta as nossas possibilidades. 

Poucos dos países desse listão da depressão contam com tanta capacidade técnica de gerir economia e governo, com economia e recursos tão diversificados, com instituições melhores ou pelo menos tanto empenho em sustentar uma democracia política.

Mas temos as nossas taras graves e esses surtos de besteirão político e econômico tão frequentes.

Taras. Mesmo nos anos melhores, de 1995 a 2010, as perversões de fundo persistiram. Estamos nos altos das listas mundiais de taxas de desigualdade, de homicídio, de juros, de mortes no trânsito, de ignorância relativa.

Precisamos falar da nossa perversão entranhada, admitir o vício, por assim dizer: "Oi, meu nome é Brasil. Sou violento, autoritário e ignorante".