domingo, 26 de março de 2017

"A traição mais vil", por Dorrit Harazim

O Globo

Nixon, quando candidato a presidente em 1968, sabotou clandestinamente as negociações de paz dos Estados Unidos no Vietnã


Dentro de dois dias chegará às livrarias dos Estados Unidos a biografia “Richard Nixon: The Life”, de John A. Farrell. E daí? Só em inglês já existem 468 outros títulos sobre a trajetória do atormentado 37º ocupante da Casa Branca (1969-74) que entrou para a História como o único presidente americano a renunciar ao cargo, afundado no caso Watergate.

O livro de Farrell causa frisson entre historiadores e jornalistas por apresentar o primeiro documento que confirma uma teoria alimentada por estudiosos há décadas, até então sem provas: a de que Nixon, quando candidato a presidente em 1968, sabotou clandestinamente as negociações de paz dos Estados Unidos no Vietnã, visando a diminuir as chances de seu adversário democrata, que se beneficiaria com a perspectiva de um final da guerra.

Embora referente a fatos ocorridos meio século atrás, a revelação dessa peça incriminatória, ou smoking gun, adquire atualidade à luz do cada vez mais bizantino festival de paranoias, teorias conspiratórias e investigações em alegado conluio da campanha de Donald Trump com a Rússia de Vladimir Putin para interferir nas eleições de 2016. “Sente-se o cheiro de traição no ar”, escreveu no “Washington Post” o historiador presidencial Douglas Brinkley. Se os indícios de conivência com os russos provarem ser mais do que mera coincidência, “teremos uma das traições mais chocantes da história à nossa democracia”, previu o democrata Adam Schiff, vice-líder da Comissão de Inteligência da Câmara, que investiga o caso em clima tóxico.

Devagar. Por enquanto a distância entre o sombrio episódio de cinco décadas atrás e as atuais suspeições sob investigação do FBI continua quilométrica. Até pelo pouco que se sabe de concreto do emaranhado trumpista. Os pontos em comum são superficiais — personagens quase ficcionais, espionagem de alta voltagem entre candidatos, rivalidades intestinas.

Em 1968 Nixon também era candidato à Casa Branca. Republicano e mal-amado pelos pares como Trump, vingativo e sem freios a modo próprio. O presidente em exercício democrata da época, Lyndon Johnson, decidira não tentar a reeleição, dada a impopularidade que a guerra no Vietnã lhe acarretara. Indicara o vice Hubert Humphrey como candidato. Para ajudá-lo, Johnson havia iniciado conversações de paz em Paris, visando a se sentar à mesma mesa com o regime comunista arqui-inimigo do Vietnã do Norte, e o governo do Vietnã do Sul, aliado e dependente em tudo dos Estados Unidos.

Avisado por um informante da “ameaça” de um acordo, o candidato Nixon tratou de despachar para o Vietnã do Sul a abastada viúva de um herói da II Guerra, Anna Chennault, grande financiadora de campanhas republicanas. Ela tinha por missão clandestina convencer o governo de Saigon a resistir aos termos da proposta apresentada pelo governo dos Estados Unidos. Em troca, quando Nixon chegasse à Casa Branca como presidente eleito, ele garantiria condições de negociação bem mais vantajosas ao exaurido governo sul-vietnamita.

Chennault apresentou-se na qualidade de embaixadora do futuro homem-forte do Ocidente, ostentou estreitos laços com o chefe da campanha republicana, John Mitchell, e deve ter sido convincente como mensageira, pois Saigon só se sentou à mesa de negociações em Paris com Nixon instalado na Casa Branca.

Contudo, graças às gravações e ao monitoramento permanentes dos serviços de inteligência americanos, Lyndon Johnson ouvira tudo. E ficara estarrecido com a falta de lealdade cívica em uma questão que envolvia guerra e paz. Ainda assim, não tornou público o que descobrira, pois não conseguiria apontar o dedo para o envolvimento direto de Nixon na gestão Chennault.

Foi só recentemente que o biógrafo Farrell descobriu sua pista. Ela data de 22 de outubro de 1968, pouco antes de Johnson ordenar uma pausa nos bombardeios para incentivar a abertura das negociações em Paris.

Richard Nixon telefonara à noite para seu assessor mais próximo, H.R. Haldeman (posteriormente seu chefe de gabinete), que rabiscou anotações do que o candidato lhe dizia: “Mantenha Anna Chennault trabalhando no SVN”(Vietnã do Sul), “Outros métodos para sabotar?”, “RN pode tudo”. Haldeman também escreveu: “Ir ver Helms (diretor da CIA). “Dizer-lhe que queremos a verdade (informações confidenciais) — ou ele perde o emprego”.

Essas anotações parecem comprovar algo bem mais infame do que o escândalo Watergate: Richard Nixon conspirou contra o abreviamento de uma guerra como tática eleitoral, para diminuir as chances do adversário nas urnas. Fez da guerra uma ferramenta política enquanto a nação se dilacerava, com mais de 16 mil soldados mortos em combate só naquele ano.

É impossível afirmar que as negociações teriam avançado de forma menos sinuosa ou lenta sem o curto-circuito provocado por Nixon — a guerra só terminou oficialmente em 1975. Mas qualquer ganho, fosse de um ano, mês, dia, ou hora teria feito diferença para americanos, vietnamitas do Norte, do Sul, civis e militares. Como em todas as guerras. Apenas no primeiro ano de mandato de Nixon, por exemplo, morreram outros 11.780 militares comandados pelo novo comandante em chefe instalado na Casa Branca.
“Foi traição”, indignara-se Johnson.

Numa conversa gravada e guardada nos arquivos da Biblioteca Presidencial de Austin, Texas, o veterano conselheiro de presidentes democratas Clark Clifford deu o seu parecer de época: “Alguns elementos dessa história são tão chocantes que me pergunto se seria bom para o país divulgá-la...”

Decididamente os tempos são outros. Na era Trump o perigo maior é a divulgação do que não aconteceu.