sábado, 25 de março de 2017

Arthur Dapieve: "A múmia envergonhada"

O Globo

Seria um caso clássico de 'a maldade está nos olhos de quem vê'?


A pedra foi colocada de tal forma que agora cobre o ânus e os genitais do Homem de Gebelein. Depois de vinte e cinco anos indo a Londres, criei rituais de chegada. Preciso passar pela imigração, pegar as malas, registrar-me no hotel e entrar em dois ou três dos principais museus. Só então sinto que carimbei o passaporte. Facilita o fato de que eles continuam sendo gratuitos, forma de o velho império ostentar poderio e generosidade. 

Embora — não está fácil para ninguém — os apelos por doações tenham se multiplicado.

Passo na National Gallery para dar um alô aos velhos amigos impressionistas e aos mestres flamencos. Percorro a ala dedicada a Turner na Tate Gallery, hoje Tate Britain para se diferenciar da Tate Modern. Ou bordejo pela seção de egiptologia do Museu Britânico, o que inclui admirar novamente a Pedra de Roseta, aquele exemplo de tradução simultânea — egípcio antigo, demótico e grego — talhado em granodiorito.

Os salões que abrigam cerca de 80 múmias vivem lotados de crianças de terninho escolar, correndo com pranchetas cheias de questões. As professoras vigiam as mais espevitadas para que não elas obstruam a visão de outros visitantes. Desde 1992, Londres se tornou fascinantemente multicultural, mas ainda vigora o tradicional medo inglês do embaraço. Terrorismo, os ingleses tiram de letra. O embaraço os apavora.

Mês passado, na enésima incursão pelo Museu Britânico, fui surpreendido por uma nova forma de embaraço, o embaraço alheio. Lá está, em exibição desde 1901, o Homem de Gebelein. Trata-se de uma múmia natural, cujo corpo nu ressecou na areia seca e quente na qual foi sepultado, em torno do ano 3.500 a.C., no período pré-dinástico, ou seja, anterior aos faraós. A vitrine reconstrói o modo como a múmia foi encontrada em Gebelein, hoje Naga el-Gherira: deitada sobre o flanco esquerdo, com as pernas flexionadas para cima, na direção do queixo, e cercada de vasos e utensílios, pinçados de enterros similares, pois o museu não adquiriu os originais da tumba.

Em 2012, a posição e o excelente estado de conservação da múmia permitiram que uma tomografia computadorizada revelasse a causa da morte do musculoso homem de 1,63 metro de altura e de 18 a 20 anos de idade. Ele foi assassinado. Uma facada desferida pelas costas quebrou uma costela que, por sua vez, perfurou um pulmão. Desde 1901, a posição e o excelente estado de conservação também expunham aos visitantes o orifício do ânus e os genitais ressecados. Expunham, pretérito imperfeito.

Descobri que, em algum momento desde minha última visita, uma pedra chata e comprida foi acrescentada à vitrine 15 da sala 64. A pedra foi colocada de tal forma que agora cobre o ânus e os genitais do Homem de Gebelein. Fiquei embaraçado ao pensar que aquilo pudesse ter deixado alguém embaraçado. É um embaraço recente. O site do Museu Britânico ainda mostra a múmia desnuda, em toda sua pungente humanidade.

Seria um caso clássico de “a maldade está nos olhos de quem vê”? Talvez sim, talvez não. 

Nem uma múmia está imune às mudanças morais das sociedades. Durante muito tempo, o próprio Homem de Gebelein foi conhecido no museu como “o Ruivo” por conta dos cabelos vermelhos. Entendeu-se, porém, que isso lhe era desrespeitoso.

Se a pedra chata e comprida foi colocada ali por alguém considerar ultrajante para o falecido ter sua intimidade devassada, deveria-se, quem sabe, retirar a múmia nua inteira das vistas do público. Afinal, a centenária exposição de seu corpo comprometeria o seu repouso eterno, independentemente da visão do ânus e dos genitais ressecados.

A mudança na vitrina 15 da sala 64 pode marcar o surgimento de um novo entendimento ético das relações que a sociedade moderna espera manter com os mortos, não importa há quanto tempo estejam mortos. É uma possibilidade que abre margem a uma discussão interessante, para a qual não tenho respostas ou certezas. Entretanto, a mudança pode assinalar algo distinto, até perigoso: a imposição de alguma forma de fanatismo religioso — ou de correção política menos sofisticada, inimiga com a qual ele frequentemente se confunde — sobre o interesse educacional e científico.

Cobrir as partes do Homem de Gebelein foi uma decisão solitária do Museu Britânico, que, aliás, sempre evitou a exposição de itens considerados obscenos? Por que só agora a múmia teria passado a ser considerada obscena? Se mudou o paradigma ético, não seria o caso de se tirar de circulação todas as múmias? Foi pressão de algum grupo? Indignação de um pai? Ao chegar de viagem, fucei a internet à cata de alguma explicação sobre a censura, de algum estranhamento. Nada. Talvez o estranho seja eu.

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Não sou Patrícia Kogut, mas gostaria de dar uma nota 10 a “Pedro pelo mundo”, do GNT, já na segunda temporada. Programas de viagem há aos montes, só que Pedro Andrade foge dos destinos óbvios, do deslumbramento etnocêntrico e da ignorância contentinha. O episódio desta semana, sobre a Coreia do Sul, foi um ótimo exemplo.