sexta-feira, 24 de março de 2017

"Terceirização fora de foco", por José Paulo Kupfer

O Globo

No moderno mundo da produção, não importa se o trabalhador é terceirizado ou não, mas como se dá a sua inserção nas regras trabalhistas vigentes


A ânsia reformista que toma conta do Congresso Nacional, sob a batuta do presidente Michel Temer, corre o risco de produzir dificuldades competitivas em lugar de promover os pretendidos avanços. Parece ser o caso dos textos que tratam da terceirização das atividades nas empresas — um aprovado, nesta quarta-feira, de surpresa, na Câmara, e outro, anunciado, também de surpresa, nesta quinta-feira, com promessa de tramitação acelerada no Senado.

Não é difícil imaginar dificuldades para fazer valer a efetiva aplicação da norma que vier a ser sancionada por Temer, sem a integração com as outras reformas do mundo do trabalho já em discussão. Importa menos que o texto da Câmara defina uma liberação quase geral da terceirização e que o do Senado preveja mais restrições a esta mesma terceirização. Nem conta muito também o fato de que um deles, o da Câmara, é basicamente um projeto velho de quase duas décadas ou que o outro seja mais recente, com data de 2015. O problema é que ambos, separados da reforma trabalhista, que prevê a prevalência do negociado sobre o legislado — o que, por sua vez, deveria requerer uma reforma sindical —, correm o risco de se transformar em monstrengos jurídicos de baixa eficácia.

Num mundo em que os processos de produção se encontram em permanente e acelerada mutação, já seria uma complicação, mesmo com tudo sendo feito como deveria, encontrar um ponto de equilíbrio entre os interesses das partes envolvidas — empresários, trabalhadores e sindicatos —, no cotidiano das relações de trabalho. Quando se adicionam conveniências políticas de outras ordens, oriundos do Congresso, a complicação natural corre o risco de se transformar em pandemônio.

É tão fácil listar os objetivos desejados de uma regulamentação (ou desregulamentação) das relações de trabalho quanto é difícil pôr na letra da lei as regras que permitirão alcançá-los. O que se pretende, com qualquer texto legal na área trabalhista, é estimular a competitividade econômica, garantir segurança jurídica a quem oferece vagas de trabalho e preservar direitos de quem trabalha. Não se sabe ainda o que, no fim das contas, sairá da salada trabalhista que o Congresso ameaça produzir.

Com o desenvolvimento da tecnologia da informação e outras inovações no processo produtivo, caso da logística dos contêineres, as cadeias de produção têm passado por uma verdadeira revolução e até mesmo o emprego, como conhecido tradicionalmente, está passando por alterações substantivas. Uma das características dos novos tempos é exatamente a impossibilidade de distinguir atividades-fim de atividades-meio. Mas nem mesmo a sanção integral do projeto da Câmara, que promove uma liberação geral da terceirização, será capaz de eliminar a insegurança jurídica nas contratações terceirizadas.
Isso se deve ao fato de que o foco da questão está mal direcionado. A questão da terceirização, em última análise, não diz respeito ao mundo dos processos de produção, mas ao mundo das relações de trabalho. Assim, não importa se o trabalhador é ou não terceirizado. O que importa é o padrão de contratação da mão de obra. Em outras palavras, como o trabalhador se insere nas regras trabalhistas vigentes. É do tipo de inserção existente que decorrerá ou não a precarização do trabalho que, entre nós, costuma quase sempre estar associada à terceirização.

Escusado dizer que, introduzida a mudança na legislação, seus impactos não se restringirão às relações entre patrões e empregados, subcontratados ou não. Os sindicatos de trabalhadores, estruturados em grande parte por atividades, cairiam no vazio. Também sem uma adequação da estrutura sindical, com a definição atualizada de representação por empresa ou mesmo local de trabalho, faltaria espaço civilizado e equânime para a prevalência do negociado sobre o legislado, como quer a reforma trabalhista.