sábado, 27 de maio de 2017

"Afronta e indignação", por Ana Maria Machado

O Globo

Não dá para esquecer. Nós já ouvimos as manobras mais escandalosas, na própria voz dos envolvidos


Estamos perplexos, chocados, estarrecidos diante de tanta desfaçatez. Um acinte, uma afronta ao cidadão. Faltam palavras para descrever como nos sentimos.

Indignação, raiva, vergonha, desalento, tristeza, nojo, descrença. Também faltam palavras para dar conta do nosso estado de espírito. Não dá para passar por cima dos horrores acumulados. Nem minimizar ou relevar coisa alguma. Já chega estarmos sendo forçados a mudar de assunto e tirar o foco de Odebrecht, OAS, Bumlai, Guarujá, Atibaia, e da expectativa do que diria Palocci, como se tudo isso tivesse deixado de existir de uma hora para outra.

Essa gente está querendo demais.

Estão há um tempão querendo que acreditemos que presidentes e seus cúmplices são honestos, não sabem de nada — e mesmo com essa incapacidade e incompetência, estão aptos a governar. Também seus auxiliares e apoiadores em todos os níveis. E mais seus opositores e adversários, como se constata nesse pântano onde estão todos atolados e com cujo fedor nos estão obrigando a conviver.

Esperam que aceitemos que não há nada de reprovável em que um presidente receba favores de empresários, com os mais variados pretextos, e em troca esses “amigos” tenham privilégios especiais.

Esperam que possamos engolir que não há nada condenável em receber dinheiro, a qualquer pretexto, com cuidados para não declarar nem pagar imposto. Até em espécie, em malas e mochilas cheias. Ou travestidos de tríplex, sítios, terrenos, guarda de bens, joias, obras de arte. E ainda querem nos empurrar goela abaixo a noção de que não faz mal algum obsequiar altas figuras da República para conseguir se isentar das leis que valem para todos os outros.

Esperam que, quando isso vem à tona subitamente, aproveitemos para tirar do cargo o bandido da vez, afastar o possível bandido de amanhã e nos deixemos manipular para lá recolocar o bandido de ontem ou anteontem, fingindo que a manobra para lhe garantir impunidade é um ato patriótico para salvar o país.

Esperam distrair a pátria mãe com discursos veementes, slogans e firulas de todo tipo, para que, mais uma vez, as tenebrosas transações possam continuar a nos subtrair sob qualquer forma.

Esperam que desviemos o olhar ou fiquemos cegos às variadas tentativas de criar obstáculos para obstruir a Justiça, atrapalhar investigações, fazer sangrar a Lava-Jato, desmoralizar o Ministério Público.

Os exemplos vêm a público diante de um país estupefato. Não dá para esquecer. Já ouvimos as manobras mais escandalosas, na própria voz dos envolvidos. A começar pela nomeação de Lula por Dilma para a Casa Civil, publicada em edição especial do Diário Oficial na madrugada, com termo de posse sem assinatura levado em mãos pelo “Bessias” para ficar como salvo-conduto e lhe garantir foro privilegiado. Em seguida, veio a revelação captada no áudio feito pelo filho de Nestor Cerveró — em que Delcídio transmitia a preocupação de Lula com eventual colaboração e incluía oferta de fuga em jatinho. 

Ouvimos ainda, com riqueza de detalhes, as conversas gravadas por Sérgio Machado dando conta do complô de parlamentares de alto coturno para deter a investigação.

Acompanhamos diferentes tentativas no Congresso para driblar a legislação — como anistia a caixa 2, ou projetos até eventualmente necessários, mas inoportunos, contra abuso de autoridade, abrangentes a ponto de pretender criminalizar juiz que interprete a lei. 
E chegamos agora às fanfarronices e confissões do Joesley Safadão, gabando-se de controlar juízes e infiltrar procurador — ouvidas sem reação pelo presidente da República, da boca de alguém que o procurara conforme combinado, no porão, na calada da noite, com o cuidado de não deixar rastros, sob nome falso e sem ser revistado.
Meninos, ouvimos!

Esperam também que a nação, estupefata, faça como eles e se disponha a ignorar as leis que nos regem. Apostam na escalada de violência e confronto, como se a depredação fosse um direito democrático irreprimível. Fala-se em PEC para mudar rapidinho a Constituição e permitir diretas-já sem levar em conta que, para evitar casuísmo, a Carta Magna impõe, em seu artigo 16: “A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”.

E mais: advogados isentos têm opinado que a Lei 12.850/13, que possibilita colaborações premiadas, limita sua aplicação no caso de quem chefie a organização criminosa. Portanto, não admitiria que para pegar os líderes políticos se passasse uma borracha prévia tão radical em líderes criminosos, como a que permitiu que os irmãos Batista se mudem incólumes para os EUA, a gastar o nosso dinheiro, obtido graças a favores especiais do BNDES e outras fontes públicas. Ainda mais agora, depois de especularem com os efeitos de sua delação sobre ações e câmbio. Leves e soltos. Fica no ar a irreverente pergunta de um motorista de táxi carioca, a encarnar com expressividade a reação do comum dos mortais:

— E no tornozelinho? Nada?