domingo, 20 de agosto de 2017

Frigoríficos levaram 80% das verbas externas do BNDES

Alexa Salomão e Marcelo Godoy - O Estado de São Paulo


Empresas de carne ficaram com R$ 11,7 bi

 dos R$ 14,5 bi liberados para busca de 

mercado no exterior; mais da metade 

foi para JBS



Os dados são do próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), principal instituição de fomento das empresas brasileiras. Se há um setor que tenha recebido especial atenção do banco durante o governo do PT no que se refere a ganhar o mercado internacional, esse setor é o de carnes.
Segundo levantamento feito pela área técnica do banco, a pedido do Estado, por meio da Lei Acesso à Informação, dos quase R$ 14,5 bilhões liberados para internacionalização de empresas brasileiras, de 2005 para cá, R$ 11,7 bilhões – 80% do total – foram para os frigoríficos.
O levantamento considerou operações via Finem, uma modalidade de financiamento, e do BNDESPar, braço do banco que compra participações nas empresas. Há uma importante diferença entre as modalidades. Financiamentos precisam ser pagos, pesam nos balanços, restringem o fôlego financeiro. Compras de participações equivalem a ganhar um “sócio capitalista”, que coloca dinheiro no negócio e fica esperando a empresa crescer para poder vender sua fatia com lucro – ou prejuízo, se o investimento der errado.
Detalhe: no total, o banco contribuiu com a internacionalização de 16 empresas de setores como bebidas, petroquímica, mineração, mas apenas uma delas, a JBS, ficou com mais da metade dos recursos. Somando financiamento, aportes via debêntures e ações, a JBS recebeu 56% de tudo que o sistema BNDES investiu ao longo de uma década em favor de todas as empresas que se lançaram na internacionalização de suas operações.
O que chama a atenção é a concentração de recursos no caso do BNDESPar. A partir de 2007, ele praticamente se dedicou à internacionalização do setor de carnes. Dos R$ 12,7 bilhões que investiu na globalização de empresas nacionais, R$ 11,5 bilhões – 90% do total – ficaram com três empresas da área. O destaque foi a JBS. A empresa recebeu R$ 5,5 bilhões. Se for levado em consideração que o banco injetara R$ 2,5 bilhões na internacionalização do frigorífico Bertin, comprado pela JBS, a empresa da família Batista acabou ficando com 63% dos aportes do BNDESPar voltados à globalização das empresas brasileiras no período. A cifra soma R$ 8 bilhões.
Polêmicas. A forma como foram feitos os investimentos nos frigoríficos, em particular na JBS, sempre foi fonte de polêmicas. Soava como favorecimento. Consolidou-se a percepção de que o governo petista adotara a política de injetar recursos para a criação de conglomerados globais brasileiros, apelidados de “campeões nacionais”.
A delação do próprio empresário Joesley Batista adicionou um novo componente à discussão. Joesley contou ter pago caro pelo dinheiro do BNDES – e não se referia aos juros, que estavam entre os mais convidativos do mercado na época. A pedido de Guido Mantega, ex-presidente do banco e ex-ministro da Fazenda, contou ter desviado 4% dos recursos liberados pelo BNDES para o PT. Mas Joesley isenta o banco e seus funcionários. Garante que o “por fora” foi acertado só com Mantega. O motivo alegado por Joesley: evitar que os seus projetos fossem barrados. Segundo o empresário, em nenhum momento se burlou o processo seletivo, que teria cumprido todos os trâmites exigidos pela instituição.
O Tribunal de Contas da União, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal discordam. Tentam estabelecer uma relação mais ampla entre as quantias destinadas à JBS e o pagamento de propinas. As autoridades contabilizam que o BNDES liberou R$ 20 bilhões ao grupo dos Batistas. Investigam em particular os R$ 8 bilhões que o BNDESPar injetou na JBS e os R$ 180 milhões que a empresa obteve por meio do Finem.
Há uma força-tarefa que investiga os empréstimos do banco. A Operação Bullish, que cumpriu quase 60 mandatos de busca e conduziu 40 funcionários da instituição para depor, aponta seis irregularidades nas transações entre BNDESPar e JBS. Duas das principais operações teriam causado prejuízo de R$ 1,2 bilhão ao banco.
O MPF alega que os gestores públicos teriam concordado em pagar mais pelos papéis da empresa dos Batistas, além de abrir mão de multas, numa transação que envolveu R$ 3,5 bilhões em debêntures, convertidas em ações em 2011. Também questiona o fato de o BNDES ter aceito que o dinheiro entregue à JBS tivesse um destino diferente do acordado, sem que novos estudos financeiros fossem feitos. Foi o caso do aporte de R$ 624 milhões que seria dirigido à aquisição da National Beef, nos Estados Unidos. Os órgãos reguladores americanos não autorizaram o negócio e o BNDESPar poderia reverter o investimento. Sucessivas revisões no contrato de concessão dos recursos fizeram com que a JBS pudesse “guardar” o dinheiro.
O banco nega irregularidades. Segundo o Estado apurou, técnicos do BNDES alegam que o TCU tem apresentado “interpretações equivocadas” das operações, porque seus técnicos não têm conhecimento de como funcionam operações no mercado de ações e de debêntures, os instrumentos utilizados pelo BNDESPar.
Resposta. Tanto a JBS quanto o BNDES negam a concentração de recursos no setor de frigoríficos utilizando uma conta diferente: somando os investimentos do banco no setor de carnes nos mercados interno e externo. Em nota, o banco informou que “apoiou o desenvolvimento das mais diversas empresas em diferentes setores” e que os investimentos nos frigoríficos fizeram parte de uma política de governo mais ampla: “O apoio recente do BNDES ao fortalecimento e internacionalização de grupos empresariais brasileiros”.
Segundo o banco, a orientação governamental “estabeleceu setores com capacidade de projeção internacional a serem apoiados por vários instrumentos de fomento. Coube (ao banco) o papel de financiador dos setores prioritários”. O BNDES lembrou ainda que, apesar de seguir a política do governo, suas decisões “são respaldadas por critérios técnicos e pelas melhores práticas bancárias”.
O BNDES reforçou que o apoio ao setor de carnes não se restringiu à JBS ou a grandes empresas. “Entre 2005 e 2016, foram contratadas no BNDES R$ 18 bilhões em operações de crédito para mais de 1.700 empresas e cooperativas de abate e fabricação de produtos de carne. O volume representou pouco mais de 1% do valor de todas as operações de crédito aprovadas pelo BNDES.”
Na conta do banco entram as operações no Brasil e no exterior. Ele informou que, entre 2005 e 2016, desembolsou em todas as suas operações cerca de R$ 83 bilhões por meio da aquisição da debêntures, ações ou por meio da participação em fundos de investimento, os chamados instrumentos de renda variável. “Desse montante, R$ 12,4 bilhões foram para empresas de abate e fabricação de produtos de carne, cerca de 15% do total. Atualmente, o setor representa menos de 10% da carteira da subsidiária de participações do BNDESPar”, diz a nota. Sobre a delação da JBS, o banco informou que “todos os fatos provenientes de investigações oficiais são objeto de avaliação integral por Comissão de Apuração Interna (CAI)”.
A JBS informou que o BNDESPar detém hoje 21,3% de suas ações, com direito a dois assentos no conselho de administração, e negou que essa participação seja fruto de favorecimentos. “De acordo com o Livro Verde, recém-lançado pelo BNDES, entre 2001 e 2016, na lista de maiores clientes do banco, a J&F aparece em 19.º lugar.” E concluiu afirmando que “tais investimentos auxiliaram na profissionalização e na melhoria da imagem do setor”.