segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Cego desde a infância, americano aprende a ‘enxergar’ usando o som

Daniel Kish trabalhando: ele desenvolveu uma espécie de sonar para se localizar espacialmente
Sérgio Matsuura - O Globo
Diagnosticado com retinoblastoma bilateral — conhecida popularmente como câncer na retina — logo após o nascimento, o americano Daniel Kish teve os dois olhos removidos antes de completar dois anos de idade. Hoje, aos 51, é conhecido como o “verdadeiro Batman”. Da mesma forma que os morcegos, Daniel é capaz de “enxergar” usando a ecolocalização. Fazendo “cliques” com a boca, ele consegue criar imagens mentais sobre o ambiente, que o permitem realizar tarefas consideradas difíceis para pessoas cegas, como andar de bicicleta ou caminhar por trilhas desconhecidas.
— Eu fui inspirado pelos meus pais, que acreditavam que eu não deveria ter limitações e deveria ser autossuficiente. Que eu tinha o direito de aproveitar as mesmas liberdades e responsabilidades que os meus colegas — conta Kish. — A maioria das crianças cegas são restritas em suas atividades e isoladas, ou mantidas sob controle dos outros. Meus pais não queriam isso para mim.
Por conta própria, Kish começou a desenvolver a técnica de ecolocalização ainda na infância, mas só se deu conta da capacidade que tinha por volta dos 10 anos, após receber explicações dos pais de um amigo. A partir daí, aprofundou-se no assunto e se tornou um dos maiores especialistas em ecolocalização humana. Na sua tese de mestrado em Psicologia, “Como humanos podem ‘ver’ sem enxergar”, aprofundou os estudos sobre o tema.
Kish explica que o som funciona para ele da mesma forma que a luz para os videntes. Ao fazer cliques com a boca, seu cérebro interpreta o eco para criar uma representação espacial do ambiente. O retorno de um objeto mais distante demora alguns milissegundos a mais que um objeto próximo e, dessa forma, ele é capaz de criar um mapa mental do entorno.
O neurocientista Mel Goodale, da Universidade de Western Ontario, no Canadá, realizou há alguns anos um experimento com indivíduos capazes de usar a ecolocalização. Eles foram instruídos a identificar alguns objetos usando a técnica ao ar livre, e um microfone foi colocado em seus ouvidos para gravar o eco. Numa segunda etapa, os participantes tiveram a atividade cerebral mapeada enquanto ouviam o som da gravação.
Os resultados surpreenderam o pesquisador. O escaneamento indicou atividade em áreas do cérebro usadas para o processamento de informações visuais em videntes, indicando que, de alguma forma, essas pessoas moldaram o funcionamento de seus cérebros.
— Ficou claro que a ecolocalização permite que essas pessoas cegas façam coisas antes pensadas impossíveis e fornece a elas um alto grau de independência — comentou Goodale.
ONG PARA MULTIPLICAR A TÉCNICA
Kish não é e nem pretende ser a única pessoa capaz de usar a ecolocalização, tanto que fundou uma ONG para ensinar a técnica. Aberta em 2000, a “World Access for the Blind” já treinou mais de 2.500 pessoas em cerca de 40 países, incluindo centenas de instrutores que servem de multiplicadores. Segundo ele, qualquer pessoa pode desenvolver essa capacidade libertadora.
— Até certo nível, qualquer um pode aprender. E esse nível vai depender de quanto esforço for empregado e da aptidão da pessoa. É como aprender uma nova língua ou um instrumento musical — comparou Kish, destacando que as crianças têm mais facilidade para aprender, mas uma senhora de 92 anos já participou dos treinamentos. — Você precisa aplicar esforço e comprometimento, mas eu acredito que seja mais fácil que aprender um idioma ou instrumento.
Um outro estudo, publicado no mês passado, descobriu detalhes sobre os cliques emitidos por essas pessoas. Os sons são focalizados, emitidos em formato cônico de 60 graus, contra os 120 ou 180 graus da fala típica. A frequência varia entre 2 e 4 quilohertz, com duração de apenas 3 milissegundos.
— A habilidade de escanear o seu ambiente significa que você tem mais informações sobre ele. Com isso, você tem mais escolhas sobre o que fazer, você se torna capaz de desenvolver sua própria relação com o ambiente, segundo a sua vontade, em vez de depender de alguém para estabelecer essa relação — diz o americano. — Você assume controle sobre o seu ambiente e sobre como interage com ele. É claro que pode recorrer ao apoio que precisar, mas por escolha, não ditado pela necessidade.