terça-feira, 17 de outubro de 2017

Show de Bruce Springsteen ficará no rol de instantes épicos da Broadway, segundo João Pereira Coutinho

Angelo Abu/Folhapress
Folha de São Paulo


Bruce Springsteen sobe ao palco do Walter Kerr Theatre, em Nova York. Aplausos fortes, gratos, demorados.

Mas há uma grande diferença entre a falange do "Boss" e os adolescentes histéricos que perdem a cabeça com artistas de plástico. O público recebe Bruce Springsteen como se ele fosse parte da família. Ou, pelo menos, um amigo de viagem, de copos, de confissões. Coisa de adultos.

E o espetáculo amplifica isso, reduzindo tudo: o espaço, o cenário, até a iluminação. "Springsteen on Broadway", como o nome indica, é apenas Bruce Springsteen, à guitarra ou ao piano, entre conversas e acordes. Simples presença, voz e memória.

O libreto? "Born to Run", essa espécie de autobiografia publicada em 2016, onde Springsteen vai dedilhando uma "carreira" de meio século, embora a palavra pomposa não se ajuste ao personagem.

Ele próprio, olhos nos olhos com o público, desconstrói as máscaras: as suas músicas ocupam-se muitas vezes do "trabalhador comum" —e, no entanto, o nosso Bruce nunca entrou em uma fábrica na vida.

A sua guitarra é lendária? Talvez. Mas foram apenas duas semanas de lições e mais nada. "Era demasiado difícil", confessa o compositor, para gargalhada do auditório.

É ironia que dura pouco porque há assuntos sérios que merecem atenção. A luz concentra-se no rosto do compositor e rapidamente percebemos que os grandes escritores americanos —nomes como Johnny Cash, Bob Dylan, Tom Waits— também estão na música popular.

Sempre em monólogo, Bruce Springsteen transporta-nos para Freehold Borough, New Jersey. Cidade pequena, conta-nos ele, onde as pessoas cultivavam tristezas e alegrias igualmente pequenas.

Para ilustrar o ponto, Springsteen canta "My Home Town" e depois prossegue, em imagens de uma clareza e de uma intensidade que fariam a inveja de Raymond Carver: ele e os irmãos, a brincar entre as lápides do cemitério, enquanto a mãe visitava a sepultura da família.

E, quando a noite chegava, o pequeno Bruce entrava no bar, a segunda casa de um pai depressivo, para o levar para casa. O bar, atenção à força das palavras, era para ele "uma terra de gigantes", mergulhada no cheiro intenso de "cerveja e after-shave".

O pai, aliás, é figura tutelar —e existe um sonho recorrente que o cantor partilha com o público: ele está em um palco e apercebe-se que o pai está na plateia. Desce do palco, aproxima-se do pai e diz-lhe que é ele, Springsteen sênior, quem está a atuar. Se a arte não serve para sublimar as vidas perdidas, para que serve a arte, afinal?

Então o jovem Springsteen decide abandonar Freehold Borough, "a town full of losers", como nos canta em "Thunder Road". E, quando a música termina, a conversa continua: ele era jovem. Não tinha nada: nem dinheiro nem fama nem futuro. Mas tinha o que nunca mais experimentou: a sensação de "uma página em branco".

É com esse horizonte de infinitas possibilidades que cruza os Estados Unidos —"The Promised Land"— em busca da sua música, do seu lugar, do seu amor.

Encontrou tudo isso —e, como prova, a mulher Patti Scialfa sobe ao palco para cantar com ele "Tougher Than the Rest", uma das grandes músicas sobre a principal virtude dos amantes. A coragem, claro. O amor não é para qualquer um.

Na história da Broadway, existem momentos épicos. O momento em que Richard Rodgers e Lorenz Hart se encontraram foi um deles. Fred e Adele Astaire, no "Lady, Be Good" (dos Gershwin), terá sido outro. E não é possível esquecer o jovem Stephen Sondheim a escrever "West Side Story".

"Springsteen on Broadway" ficará na galeria dos momentos épicos: em quase duas horas de conversa e música, não revisitamos apenas a vida de Bruce Springsteen.

Pela sua voz, revisitamos os Estados Unidos —as suas paisagens grandiosas ou desoladas; as suas vitórias ou trágicas derrotas; a sua gente, as suas paixões, as suas ilusões.

E, como acontece na grande arte, somos capazes de revisitar também as nossas próprias vidas, igualmente feitas de nostalgia infantil, amargura familiar, desejo de fuga e esquecimento.

Mas também de sonho, de promessa, de liberdade. E de uma vontade estranha de regressar a casa e, como diria o poeta, conhecer o lugar como se fosse a primeira vez.