quarta-feira, 15 de novembro de 2017

"O fascinante encontro de dois personagens da escravidão brasileira", por Leandro Narloch


Folha de São Paulo


Passei os últimos dois anos montando um livro com biografias improváveis de escravos e senhores do Brasil escravista. Adianto a seguir uma das histórias que mais me impressionaram: a de Gbego e Joaquim, dois personagens que viveram um encontro fascinante no começo do século 19.
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Gbego Sokpa foi um africano vendido como escravo ao Brasil. Joaquim d'Almeida era um traficante de escravos da mesma época.

Gbego nasceu em Hoko, na África Ocidental. Quando ele era criança, o Exército de algum rei africano atacou sua vila e capturou sua família. Levado a ferros até a costa, Gbego foi vendido para traficantes de escravos e embarcado no porão de um navio negreiro.

No outro lado do Atlântico, Joaquim d'Almeida alugava navios para ir até o Golfo do Benim adquirir escravos como Gbego. Comprava "peças", como se dizia na época, pagando os reis africanos ou os intermediários europeus com ouro, libras esterlinas, dólares ou rolos de fumo da Bahia.

Gbego pertencia ao povo Jeje, que ocupava territórios onde hoje estão Togo, Gana e Benim. Os Jejes e seus descendentes foram os principais criadores de religiões afro-americanas como o candomblé, o vodu haitiano e a santería cubana.

Joaquim d'Almeida praticava o catolicismo com devoção. Chegou a embarcar, na Bahia, um carregamento com estátuas e imagens semelhantes às da capela do Corpo Santo, uma igrejinha ainda hoje instalada no bairro do Comércio, em Salvador. Mandou a carga para o Daomé, um dos reinos do Golfo do Benim, onde foi construída a primeira capela da região.

Gbego, ao chegar a Salvador, se tornou escravo de um pernambucano chamado Manoel, que trabalhava como mercador de escravos e capitão de navios negreiros. Entre 1814 e 1826, esse capitão viajou pelo menos 11 vezes para a África. Gbego conquistou a confiança de seu senhor e passou a acompanhá-lo nas viagens como assistente e intérprete.

O traficante Joaquim d'Almeida, por volta de 1845, decidiu deixar a Bahia e mudar seus negócios para o Golfo do Benim. Antes da viagem, escreveu um testamento. Afirmou possuir nove escravos em seu poder, 36 em Havana e 20 em Pernambuco, além de uma casa em Salvador e participações em dois navios negreiros que naquele momento cruzavam o Atlântico.

Gbego, anos depois de chegar a Salvador, conquistou a alforria e decidiu seguir a profissão de seu senhor. Durante o convívio com outros escravos no Brasil, conheceu o cristianismo e ingressou numa confraria católica. Ao se converter ao catolicismo, Gbego decidiu se batizar com um nome cristão. Como era costume na época, escolheu seu novo nome homenageando o antigo dono —o mercador de escravos Manoel Joaquim d'Almeida.

Foi assim que o escravo Gbego Sokpa se tornou o traficante de escravos Joaquim d'Almeida.

O ex-escravo e então traficante de escravos criou na cidade de Aguê uma comunidade de libertos que haviam vivido no Brasil. O etnógrafo Pierre Verger, pesquisando livros de batismo nas igrejas e capelas do antigo Daomé, encontrou 82 filhos e muitos afilhados de Joaquim d'Almeida.

A comunidade de "agudás", os ex-escravos do Brasil que retornaram à África, existe ainda hoje no Benim. No mês de janeiro, seus descendentes organizam a festa do Senhor do Bonfim, comem feijoada, cantam antigas músicas luso-brasileiras e deixam oferendas ao redor do túmulo do africano Gbego Sokpa, que ainda hoje é conhecido por ali como o brasileiro Joaquim d'Almeida.