quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

‘E então, que quereis?...’, por Paulo Delgado

O Estado de São Paulo


Num restaurante de Londres, entre a morte de Karl Marx e o nascimento de Joseph Schumpeter, dois amigos, um liberal e um comunista, jantavam. Ao ouvir gritos de uma briga de rua seguidos de silêncio, o de esquerda disse: perdemos! Como assim, se você nem sabe do que se trata, indagou o de direita? Amanhã saberemos; mas, adianto, o lado que perdeu, esse sempre somos nós.

Dessemelhanças, o desconforto diante das coisas que não se encaixam. Essa alegoria, que gostava de contar a meus alunos assustados com o sucesso do capitalismo no mundo, nunca perdeu a atualidade.

Desde que a ideia do Estado forte montou guarda na porta da imaginação política, a superficialidade de análise minou a autoconsciência da esquerda. Fez a glória de cálculos frustrados, chamou de consciência confusos sentimentos ideológicos, supôs a animosidade uma forma de virtude. O narcisismo pela causa perdida se confundiu com compaixão. Sem defesa, a melancólica grandeza do crédulo militante juntou-se à intolerância esperta do chefe de partido. E aquele tabuleiro de peças arrumadas, monopolizado por favores e temores, produziu ligação sentimental tão desarrumada no povo que o nome do afeto que o sustenta não é alegria, é medo.

E, assim, a base na qual a vida soviética se afirmava não enchia taça de liberdade que pudesse umedecer o deserto de ideias que imperava. Uma história em três atos, de um compridíssimo período de portas fechadas, reunindo a notável esperança do início, a vulgaridade brutal do meio, a insignificância profética do fim.

Porque nem a misericórdia perdoa o caráter economicamente atrasado e filosoficamente estéril de sociedades em que a vontade humana não é recurso renovável. Ninguém será livre cobrando do Estado a exoneração das dificuldades da vida.

O fato de um sistema de produção ser coletivo não garante que o aspecto econômico do esforço e da satisfação humana tenham sido alcançados melhor.

O homem é mais criativo usando a imaginação, o sonho, o pensamento do que os braços, o corpo, o suor como fator de produção. Produzir não é criar, é transformar o que já existe. O capitalismo avançou mais que o socialismo porque percebeu primeiro que o sonho dos homens é descobrir a desutilidade do trabalho, sua penosidade. A União Soviética sumiu na poeira do tempo quando passou a confundir a disciplina para o trabalho obrigatório e coletivo com uma teoria geral da escolha e da felicidade. A ilusão de se atingir um padrão invariável de comportamento pressupõe a supressão dos órgãos sensoriais humanos.

Qualquer regime político fracassa se não confia nas possibilidades contidas na sociedade. Um senso comum soberano das ações humanas para se organizar e sobreviver com autonomia. Não foi defeituoso o método que os líderes da revolução russa de 1917 usaram para se manter no poder. Foi inaceitável. Seu maior problema é inventar um sistema produtivo cujo custo de implantação e funcionamento foi infinitamente maior do que a satisfação que possibilitou. Nenhum operário, astronauta, comerciante ou fazendeiro se torna mais criativo e livre com o crachá de um departamento do governo.

O aniversário da revolução bolchevique bem poderia ter passado incólume. Afinal, qual horizonte oferece às gerações atuais? O fato de ser necessário algum controle para qualquer atividade humana não significa que ele deva ser estatal. Se o campo do que é legítimo só pode ser certificado pelo Estado, não sobra papel para o cidadão. E foi essa confusão liberdade-Estado-indivíduo-sociedade que afastou sonhadores, políticos, intelectuais e entusiastas das causas democráticas da defesa de uma Moscou vermelha.

Com o fim da União Soviética; com a estraçalhadoramente pragmática adesão da China ao capitalismo; com a alienação mundial que a globalização escancarou no rosto das novas gerações; com a cada vez menos idealizada e charmosa Cuba; com o silêncio mundial ante a solução arbitrária do conflito na antiga Iugoslávia; com a patética Coreia do Norte; com tudo isso e mais um pouco, o comunismo, como sonho, perdeu influência nos lares, nos estudos de organizações e instituições. O leão reduziu-se a gato, deixando um vazio na função de contraponto aceitável para formadores de opinião. E é pelos olhos de um deles que o desastre foi pressentido: “Nada de novo há no rugir das tempestades”, alertou Maiakovski no poema E então, que quereis?..., pouco tempo antes do tiro que o matou.

Ainda que não se observem grandes mudanças do padrão de distribuição de renda no mundo há em curso uma tendência, não cíclica, de acumulação muito significativa da riqueza disposta no planeta. O fenômeno, popularizado por um contundente livro de Thomas Piketty, até então um economista francês que fazia carreira distante das discussões econômicas de impacto global, mostrou força, pois, mesmo quando combatido, nunca o foi de forma que fragilizasse diretamente o cerne de sua análise.

De fato, a riqueza no planeta está concentrada e continua com uma dinâmica de mais concentração nas mãos de um reduzido número de indivíduos. Mas o mundo nunca foi tão rico quanto agora, que a recompensa pelos que apostam na livre-iniciativa segue a regra em que o risco dos investimentos é menor do que o retorno que proporciona.

Se você quer ser dono dos seus desejos, não deixe o Estado ser o único empregador. Nem dê seu tempo à emoções massificadas, fermento da fúria falsa do manipulador. Há um desconcertante defeito/virtude de origem na democracia. Ela é um filtro para produzir uma minoria legitima e confiável. Caso tal elite se torne desprovida de virtudes, que seja, constitucionalmente, deposta. A areia escorre garganta abaixo na ampulheta.

Com que santo e milagre será enfeitado o aniversário dos governos progressistas atuais pouco se pode antever. Para a União Soviética basta o réquiem pela morte do enorme equívoco que foram seus governos arbitrários.

*Sociólogo, é copresidente do conselho de economia, sociologia e política da Fecomercio de SP. e-mail: