terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O que revela a torcida insana para que Jerusalém pegue fogo. Dois ódios somados, a Trump e a Israel, insuflam narrativas maniqueístas sobre protestos palestinos; só os fatos atrapalham

Manifestantes protestam a favor da Palestina após decisão dos Estados Unidos de mover a embaixada americana em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém
Baile de máscaras: revolta é real, mas protestos de governos
árabes sobre Jerusalém têm muito de encenação
(Ahmad Abdo/AFP)


Vilma Gryzinski - Veja


Para a classe do comentariado em geral, Jerusalém está em chamas, o processo de paz (atualmente inexistente) ruiu e o mundo árabe fervilha de revolta.

Ainda é cedo para saber se a decisão de Donald Trump de “reconhecer a realidade” e admitir que Jerusalém é a capital de Israel, um fato lavrado em lei desde 1995 pelo Congresso – portanto, pelo povo americano – , vai provocar tantas consequências deletérias.

De forma geral, tudo o que pode piorar no Oriente Médio, piora. Ninguém duvida que o Hamas, em Gaza, ruma para um novo ciclo de confrontos. Ao norte, o Hezbollah pode reagrupar esforços uma vez consolidada a sobrevivência do regime sírio.

Mas é intelectualmente desonesto fechar o foco, das câmeras e das ideias, em manifestações de protesto para dar a impressão de que são maiores e mais generalizadas do que na realidade.

Também há algo de crueldade no desejo mal disfarçado de que palestinos nos territórios ocupados provoquem atos violentos que acabam se voltando contra eles próprios. Dois já foram mortos assim.

Há bons argumentos para considerar a decisão de Trump negativa sob todos os pontos de vista. Há poucos no sentido contrário (“Choque de realidade”, é um deles).

Mas deixar que o ódio a Trump e a Israel amplie, às vezes até inconscientemente, as reações negativas obscurece alguns fatos contemporâneos e históricos. Vale lembrar alguns deles para dar uma ideia das complexidades envolvidas.


1. O efeito encenação move diversas manifestações de governos árabes. O rei Salman da Arábia Saudita, por exemplo, considerou o reconhecimento “irresponsável”, além de “passo perigoso”.  O que mais poderia dizer?

Na prática, o herdeiro e dono do show, Mohammed Bin Salman, está totalmente antenado com Jared Kushner, o genro a quem Trump confiou, com característico gosto pelo risco, um plano de solução para a questão árabe-israelense.

Dias antes da declaração de Trump sobre Jerusalém, o New York Times fez uma reportagem reveladora sobre uma viagem “misteriosa” de Mahmoud Abbas à Arábia Saudita.

Nela, o líder da Autoridade Palestina ouviu do príncipe herdeiro como seria um acordo com Israel.

Não muito diferente do que existe hoje: o futuro Estado palestino na Cisjordânia não teria continuidade territorial pois continuaria salpicado por centros populacionais judaicos.

O “direito de retorno” dos descendentes de palestinos que fugiram ou foram expulsos ficaria no desejo. E, especialmente significativo diante do que aconteceria dias depois, Jerusalém Oriental não seria a capital palestina. Para amenizar, os sauditas despejariam dinheiro no novo país.

Todo mundo, claro, desmentiu. O príncipe herdeiro tem feito jogadas erradas em várias de suas manobras ambiciosas. A mais desastrosa, com ares de pastelão, foi a tentativa de tirar Saad Hariri do posto de primeiro-ministro do Líbano.

Pode acabar mal, por reação interna das forças mais conservadoras. Acabar mal geralmente tem um sentido bem literal nessa parte do mundo. Mas também existe a possibilidade de que o jogo esteja combinado entre Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita e proximamente uma proposta parecida seja explicitada.


2. Acabar mal também é uma preocupação para o rei Abddullah II da Jordânia, um país artificial, como tantos outros nascidos dos interesses coloniais depois da I Guerra Mundial, com uma enorme população palestina que precisa representar, apaziguar e controlar.

Seu pai, o rei Hussein, teve que fazer mais. Depois da derrota na Guerra dos Seis Dias, em 1967, Yasser Arafat e a tropa da Organização para a Libertação da Palestina fugiram para a Jordânia, transformando-se num estado dentro do estado.

Hussein escapou de duas tentativas de assassinato e mobilizou o exército contra a OLP em setembro de 1970. O confronto virou até nome de uma facção palestina, Setembro Negro. A OLP, que operava em campos de refugiados, foi fragorosamente derrotada, sofrendo  3 400 mortos.

Depois da rendição, os sobreviventes foram para o Líbano, onde a história se repetiu tragicamente, com consequências muito piores.

O primeiro rei Abdullah abriu um precedente inesquecível para a família que se considera descendente direta do profeta Maomé e tinha a guarda de Meca e Medina, perdida para os sauditas, e de Jerusalém, perdida para Israel.

Abdullah foi assassinado na cidade santa, na entrada mesquita de Al-Aqsa, em 20 de julho de 1951, por um alfaiate palestino. A conspiração foi colocada na conta do mufti de Jerusalém, do tradicional clã palestino dos Husseini. Era um inimigo literalmente mortal de Abdullah, que o removeu do cargo e preferiu fazer negociações secretas com o recém-criado Estado de Israel.


3. A ideia de que o presidente Emmanuel Macron “ocupe o vazio” deixado pelos Estados Unidos só tem lugar em algum universo paralelo onde a França é uma superpotência global. As palavras duras para Benjamin Netanyahu, num encontro em Paris no domingo, fazem parte da mesma encenação.

O compromisso mais importante de Macron foi o funeral com honras de chefe de estado ao cantor Johnny Hallyday, com cerca de um milhão de pessoas nas ruas. O protesto contra Israel, Trump e tudo mais teve algumas centenas de participantes.


4. Só para lembrar: o discurso de Trump pode realmente ter sido um “ato alucinatório”, “tão contraprodutivo quanto unilateral”, vindo de um presidente que se pauta pela “falta de paciência, a desonestidade, a ignorância e a presunção”, na descrição entusiasmada do Guardian.

Mas teve a ressalva de que o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel não significa que os Estados Unidos estejam “tomando uma posição sobre questões  envolvendo o status final, incluindo os limites específicos da soberania de Israel sobre Jerusalém”. Esta é a parte que os diplomatas profissionais conseguiram inserir no discurso. Já é alguma coisa.


5. Uma história sobre o dia 7 de junho de 1967, quando uma brigada de paraquedistas de Israel rompeu as defesas jordanianas e entrou na cidade velha, a que é cercada por muralhas.

O relato foi contado pelo general Uzi Narkiss, o comandante da operação, com a condição de que só fosse divulgada depois da morte de todos os envolvidos, inclusive ele próprio.

Segundo Narkiss, os primeiros paraquedistas que chegaram na esplanada das mesquitas, o Monte do Templo para os judeus, “vagavam como se estivessem num sonho”. O rabino-chefe do Exército, Shlomo Goren, aproximou-se dele e disse: “Uzi, este é o momento de colocarmos 100 quilos de explosivos aqui e nos livrarmos disso para sempre.”

Narkiss rejeitou a proposta. Diante da insistência do rabino, ameaçou mandar prendê-lo. O lugar onde existiram os dois templos do judaísmo, o de Salomão e o de Herodes, continuaria a ser do Islã.


6. Outra história, contada por Yoram Zamosh, o comandante da companhia que chegou ao Muro das Lamentações levando na mochila uma bandeira de Israel dada por uma anciã judia durante os combates em Jerusalém.

Ao chegar ao Muro, ele tirou uma esferográfica do bolso e escreveu na bandeira que tinha sido colocada por sua brigada de paraquedistas, a 55. Ficou em dúvida quanto à data, mas finalmente acrescentou: “Em 7 de junho de 1967, quando tomaram a cidade velha”.

Um colega sugeriu que mudasse o verbo para “libertaram”. Zamosh rabiscou a alteração. Os paraquedistas se perfilaram e cantaram o hino de Israel. “Os versos escapam roucos de nossas gargantas, terminando com o estribilho ‘Para sermos um povo livre em nossa terra, a terra de Sião e Jerusalém’.”

Outra bandeira de Israel foi colocada pelo oficial de comunicações Ezra Orni no topo da Cúpula da Rocha, a que  o rabino chefe tinha proposto explodir.

Moshe Dayan, que com os combates já iniciados tinha tomado posse como ministro da Defesa, viu tudo de binóculo e mandou uma mensagem por rádio. “Você quer tocar fogo no Oriente Médio?”, esbravejou para o comandante in loco. A bandeira foi retirada.