sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O presidente da Eletrobras conta como a hipertrofia causada pelas indicações políticas e o populismo tarifário quase levaram à lona a maior empresa de energia da América Latina

Bianca Alvarenga - Veja


Domando o elefante

"Cabe ao estado fazer indicações para posições importantes, mas antes não havia regras claras. Mais de mil pessoas ganham acima do meu salário, o presidente da empresa"


Assim como a Petrobras, a estatal Eletrobras era uma empresa à beira do colapso até pouco tempo atrás, apesar de ser a maior companhia de energia elétrica da América Latina. Corroída pelo uso político e pelas decisões populistas de manipular os preços das tarifas, sobreviveu nos últimos anos à base de dinheiro público. A reestruturação da empresa foi confiada a um dos executivos mais tarimbados do setor, o engenheiro elétrico Wilson Ferreira Júnior, de 58 anos. Com passagens por diferentes companhias nos seus mais de trinta anos de carreira, Ferreira assumiu o comando da estatal em julho de 2016. Teve de lidar com um gigante que acumulara 30 bilhões de reais de prejuízos nos quatro anos anteriores e cuja dívida batia na casa dos 50 bilhões de reais. Em sua gestão, Ferreira impôs o corte de custos como prioridade. O ajuste inclui a eliminação de metade do quadro de funcionários, venda de subsidiárias e a privatização da companhia; mas isso dependerá da aprovação do Congresso. Em um sinal evidente de que a reformulação tem sido bem vista pelo mercado, as ações da companhia acumulam uma valorização de 70% desde meados de 2016. Em conversa com VEJA, em seu escritório no Rio de Janeiro, o executivo falou sobre as ineficiências que sangraram a estatal – e como isso poderá ser superado.
No momento em que o senhor assumiu a presidência da Eletrobras, a empresa acumulava quatro anos de prejuízo consecutivos. Havia o risco de falência? O que mais me impressionou foi o endividamento da companhia. Nunca tinha visto uma empresa que funcionasse e cuja dívida equivalia a nove vezes a geração de caixa. A Oi entrou em recuperação judicial quando o seu endividamento bateu em seis vezes o seu fluxo de caixa (lucro antes do pagamento de impostos e dos juros da dívida). Nosso plano desde o início esteve focado na redução da dívida e para isso estava claro que seria necessário vender ativos. Isso sempre esteve ao alcance da Eletrobras, mas ela não fez, talvez pelo tabu que o tema representa. Não havia razão, por exemplo, para construir uma nova sede em um terreno que, por si só, custou 100 milhões de reais. Estamos falando de uma empresa que não consegue pagar suas dívidas, seus fornecedores e seus parceiros.
A Eletrobras, além de ser a maior geradora de energia do país, possuiu subsidiárias que controlam a distribuição de energia no Norte e no Nordeste. Essas empresas acumulam dívidas bilionárias. Elas serão vendidas? A Eletrobras é uma companhia que é relevante em geração e em transmissão de energia. Não somos relevantes em distribuição, embora haja seis empresas do setor na nossa estrutura. Infelizmente, temos as distribuidoras com as maiores perdas de energia e com as maiores interrupções no fornecimento aos consumidores. O nível de qualidade é muito baixo. Colocamos as seis distribuidoras em processo de privatização, o que deve ser concluído até o primeiro semestre.
Além da venda de ativos, o processo de reestruturação prevê o corte de até 10 000 funcionárias. A estrutura estava inchada? Na área de transmissão de energia, as nossas despesas são 43% maiores que as receitas. Em distribuição é pior ainda: temos o dobro de despesas em relação às receitas. Estamos perdendo dinheiro nessas atividades. O motivo disso é que temos gente demais: 24 000 empregados no total. Se compararmos o número de funcionários que representam o que eu “chamo de chão de fábrica” (aqueles que sobem no poste de luz, operam subestação e usinas, fazem manutenção) com o número de pessoal das áreas corporativas (escritório, contabilidade, recursos humanos) chegamos a uma proporção de meio a meio. As empresas eficientes não têm mais do que 20% de seus funcionários em atividades corporativas, não 50%, como é o caso da Eletrobras. Há uma enorme redundância em diversas funções. 
Por exemplo? Tínhamos assessores para presidente, diretores, superintendentes e para chefes de departamento. Agora, colocamos uma regra: somente diretores terão direito a assessores, e em um limite de dois para cada um. Cortamos em 63% o número de assessores. Fizemos um plano de aposentadoria que custou 800 milhões de reais, mas que nos proporcionará uma redução de custos da ordem de 900 milhões de reais por ano. Reduzir o quadro de funcionários significa cortar despesas de aluguel, luz, viagens. Com a venda de subsidiárias e a redução de pessoal, o número total de funcionários deverá cair pela metade, para 12 000. Assim, a empresa passará a ter custo operacional compatível com a tarifa, e endividamento compatível com os limites financeiros.
Ainda são comuns as nomeações políticas na estatal? O controlador continua sendo o Estado e cabe a ele fazer indicações para posições importantes – eu, por exemplo, sou uma indicação do ministro. Mas antes não havia regras claras, agora tem. Temos um comitê de elegibilidade que avalia o currículo dos indicados. A cada cinco, um é barrado. Selecionar candidatos em uma empresa privada é mais simples: você chama um headhunter, pede o melhor cara do setor e contrata. Aqui, não. Mais de mil pessoas na Eletrobras ganham acima do meu salário, o presidente da empresa. Há funcionários que ganham quase o dobro.
O senhor sofre pressões para manter apadrinhados na empresa? Tenho liberdade para fazer qualquer reclamação por meio da comissão que peneira as indicações. Aliás, se eu tivesse algum desconforto, falaria com o ministro (Fernando Bezerra Coelho Filho, de Minas e Energia). Conversamos diariamente.
Durante uma reunião com representantes sindicais, o senhor foi gravado em áudio dizendo que a Eletrobras tinha “40% de cara que não serve para nada, ganhando uma gratificação, um telefone, uma vaga de garagem, uma secretária”. Chamou ainda esses funcionários de “vagabundos” e “safados”. O senhor volta atrás no que disse? A forma em que áudio foi divulgado dá a impressão de que eu falo de todos os empregados, mas não era isso. Eu me dirigi a um conjunto de gestores que, mesmo recebendo uma série de gratificações, não exerciam na plenitude as suas obrigações. Uma companhia que está em uma má situação financeira tem que ter exemplos que vêm de cima. Tínhamos também outros problemas. Mais da metade dos funcionários recebe adicional de periculosidade. Muitos deles ganhavam por periculosidade eventual – ou seja, o empregado recebia quando ia a uma área de risco. Só que aconteciam casos em que o funcionário viajava por dois dias, no dia 30 de um mês e voltava no dia 1º do mês seguinte, e ganhava o adicional por dois meses inteiros. São os gestores que autorizam isso. Há 68 entidades sindicais que se relacionam com a Eletrobras. Costumo falar que lido com mais sindicatos aqui do que toda a Alemanha ou toda a Inglaterra. 
O projeto de privatização da Eletrobras enfrenta forte resistência do Congresso. O senhor acha que será possível concluir a operação? Acredito que seja possível. O que posso dizer, como empresário, é que a companhia tem potencial, mas que para cumprir sua missão ela precisa de dinheiro. O governo não tem recursos disponíveis, de jeito nenhum. Vejo pessoas se queixando pelos cortes orçamentários nas áreas de educação, ciência e tecnologia, e eu entendo o pleito delas. Se tivermos que cortar mais recursos dessas áreas para alocar aqui na Eletrobras, será um contrassenso. Considero que seja importante que o governo possa dar atenção ao que ele tem obrigação. Se olharmos quem ganhou com a geração de valor da Eletrobras nos últimos anos, os grandes beneficiados foram os funcionários e os bancos. Os acionistas foram os únicos que perderam – e o governo é o maior deles, com 41% das ações. Sei que a privatização é uma operação que enfrenta resistência política. Mas a empresa, da forma que está hoje, perde relevância a cada dia.
Esperava-se que a privatização caminhasse por meio de uma Medida Provisória, que tem tramitação mais rápida, mas será por Projeto de Lei. Qual é a sua avaliação sobre essa mudança? Já estava definido que teria uma discussão – seja por MP ou por PL. E é importante que isso seja tratado no Congresso, porque essa é a casa que toma as decisões em relação ao futuro. A Eletrobras foi criada por lei, como qualquer outra empresa estatal. Essa lei terá que mudar. Mas a privatização depende de uma providência simples: dispensar o governo da obrigação de injetar capital na empresa. Quando cheguei à empresa, a primeira coisa que eu tive que fazer foi pedir dinheiro para o controlador, porque havia dívidas que não podiam mais ser roladas. O governo nos deu 2 bilhões de reais em 5 meses – é muita coisa. Há um problema técnico causado por aquela redução de 20% nas contas de luz, em 2013. A remuneração da Eletrobras pela geração de energia diminuiu em 65%. O consumidor foi beneficiado de início, mas ao longo desse período, a tarifa de luz foi subindo para cobrir as perdas causadas pela decisão. Por isso, é preciso modificar as regras – e essa mudança também terá que passar pelo Congresso.
Caso a privatização não saia até o segundo semestre do ano que vem, o que deverá nortear a empresa? Há um plano B? O plano A da Eletrobras é buscar a eficiência na própria operação, e esse plano não muda. Se não privatizar, deixaremos de resolver um obstáculo ao desenvolvimento do país. Além disso, os novos investimentos seriam feitos já tomando recursos do mercado de capitais. Colocamos um freio no plano de investimentos que estava desenhado. Focamos em terminar todas as obras em curso. Terminamos as usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, além da térmica de Mauá III, em Manaus. Em 2018 vamos concluir as hidrelétricas de São Manoel e Sinop. Belo Monte ficará totalmente pronta em 2019, junto com as novas linhas de transmissão. É a única obra que vamos levar para além de 2018. No curto prazo, a Eletrobras não será uma grande investidora e não poderá ajudar o Brasil a se recuperar.
Nas investigações da Petrobras, ex-dirigentes defenderam-se dizendo que a empresa é grande e por isso seria impossível acompanhar a lisura de cada processo. Isso se aplica para a Eletrobras? Fizemos uma autodenúncia junto às autoridades americanas e estamos concluindo uma ampla investigação independente, cujo resultado não identificou atos ilícitos por parte de executivos da Eletrobras. Mas nem eu, ou qualquer outro presidente, tenho como impedir que um funcionário cometa irregularidades. No entanto, é responsabilidade dos gestores ter instrumentos para identificar desvios e puni-los. É isso que estamos fazendo.