segunda-feira, 19 de março de 2018

"Vistas a perder de vista", por Roberson Henrique Pozzobon

O Globo

Cada ministro, ou seja, 9,09% da Corte, pode isoladamente definir o rumo das demandas sob apreciação do tribunal, impedindo que prevaleça entendimento da maioria



Onze ilhas. Esta metáfora, que procura explicar o distanciamento entre os ministros do STF no que diz respeito ao conteúdo de suas decisões, também retrata a forma como a Corte define sua agenda. O isolamento, por vezes, é tão grande que impede até mesmo que uma decisão já majoritária da Suprema Corte surta efeitos.


Cada ministro, ou seja, 9,09% da Corte, pode isoladamente definir o rumo das demandas sob apreciação do Tribunal, impedindo que prevaleça o entendimento da maioria. Pode fazer isso, no exercício de uma espécie de poder negativo de agenda, simplesmente solicitando vista de processo em julgamento. Embora o regimento do STF disponha que “se algum dos ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los para prosseguimento da votação até a segunda sessão ordinária subsequente”, na prática o prazo de vista é limitado apenas pelo bom senso do julgador. Na família de normas brasileiras, essa espécie está no gênero das normas sem consequência. Verdadeiro abre-alas para vistas a perder de vista.

Se no Congresso Nacional 50% dos votos mais um são suficientes para a aprovação de leis ordinárias, no STF a maioria não basta para que uma decisão produza efeitos. Esse poder de “não decisão” dos ministros do Supremo, especialmente por orbitar na esfera de seus poderes informais, escapa de controle. Veja-se o caso de Marcos Mendes, acusado de corromper eleitores pelo estômago, distribuindo carne e notas de R$ 50 em troca de votos, em 2008. Seu processo já passeou bastante pelo Judiciário e ruma, com vigor, para a prescrição e impunidade. Enquanto Marcos Mendes oscilou seu status entre prefeito, cidadão comum, deputado federal e novamente prefeito, sua ação penal mais pareceu a bolinha de um pinball jurídico. Passou pelo TRE-RJ, por um Juízo Eleitoral de primeiro grau e está, por ora, no STF.

De fato, as alterações de foro do atual prefeito de Cabo Frio remetem às paletas do game. Se no jogo tradicional elas servem para desafiar a gravidade e pontuar jogando a bola para cima, no pinball jurídico elas impedem que a ação penal seja julgada e que o réu passe pelo fino “vão” da responsabilização criminal.

Não apenas a ação de Marcos Mendes, próxima do aniversário de dez anos, mas muitas outras que poderiam seguir a sua sorte estiveram muito próximas de uma definição do STF no ano passado. O relator, ministro Barroso, proferiu voto histórico, em maio de 2017, no sentido de restringir o foro privilegiado para os crimes cometidos durante o exercício do cargo e, em razão dele, determinou o fim da instrução penal como marco para fixação de competência definitiva sobre o caso.

Não obstante, pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes interrompeu o julgamento por seis meses. Retomado em 23/11/2017, após o voto de outros seis ministros pela restrição do foro privilegiado, foi o ministro Toffoli quem resolveu pedir vista do processo, suspendendo o julgamento deste então. Na oportunidade, mencionou que o Congresso Nacional já estaria examinando a questão. Disse ainda que precisaria de mais tempo para avaliar as consequências da decisão.

Com o devido respeito, o ministro poderia ter refletido antes e preparado sua decisão com antecedência. As pautas do STF são públicas, e o tema está no centro da discussão pública há muito tempo. Além disso, não é o caso de condicionar a agenda do Judiciário à do Legislativo.

Se, materialmente, o voto do ministro Toffoli pode produzir pouco ou nenhum efeito, haja vista que não alterará a decisão do STF sobre o tema, procedimentalmente ele é muito poderoso, pois anula a eficácia da Suprema decisão já tomada. A metáfora sobre as 11 ilhas parece se encaixar perfeitamente. Alias, não se surpreendam se nesse caso houver um terceiro pedido de vista.

Roberson Henrique Pozzobon é procurador da República e membro da força-tarefa Lava Jato do Ministério Público Federal no Paraná