domingo, 15 de abril de 2018

"O casal que abalou Paris", por Artur Xexéu

O Globo

Os americanos Sara e Gerald Murphy se refugiaram do moralismo dos EUA na Europa


A Geração Perdida, aquele grupo de artistas que incendiou Paris na década de 20 do século passado, teve muitos casais famosos. Olga e Pablo Picasso, Zelda e F. Scott Fitzgerald, Elizabeth e Ernest Hemingway, Gertrude Stein e Alice B. Toklas... Mas talvez o casal mais importante dessa turma não tenha alcançado a fama de seus companheiros. 

Agora, com o relançamento no Brasil de “Viver bem é a melhor vingança”, o livrinho do jornalista americano Calvin Tomkins (editora Autêntica), com tradução de Beatriz Horta — daquelas raras traduções que dão a impressão de que foram escritas originalmente em português —, Sara e Gerald Murphy voltam a ter o destaque que merecem.

“Viver bem...” já tinha chegado às livrarias daqui, pela editora Globo, em 1962, mesma época de seu lançamento nos Estados Unidos. 

Dez anos depois, ganhou nova edição da Artenova. Mas, desde então, só era encontrado em sebos. É revelador. Costuma-se atribuir a “Paris é uma festa”, de Ernest Hemingway, o livro definitivo sobre os anos loucos que juntaram, no mesmo espaço, Picasso e Leger, Hemingway e Fitzgerald, Diaghilev e Cole Porter. Mas “Paris é uma festa” é um romance. 

E, por isso mesmo, a realidade adapta-se à ficção, e, por mais que Hemingway tenha baseado suas criaturas nas personalidades que o cercavam naquele período, elas serão sempre personagens. “Viver bem...” é uma reportagem jornalística. Portanto, está mais próximo da realidade do que o romance de Hemingway.

O livro nasceu quase por acaso. No começo da década de 60, Tomkins e a mulher tornaram-se vizinhos dos Murphys em Snedens Landing, um subúrbio reservado de Nova York. Ficaram amigos e, nas conversas que travavam, Tomkins viu semelhanças entre o casal de vizinhos — na época já com mais de 60 anos — e Nicole e Dick Diver, os protagonistas de “Suave é a noite”, o romance de Fitzgerald também ambientado nos anos 20 em Paris. 

Com o tempo, ficou claro que os Divers eram mesmo inspirados nos Murphys. Enquanto coletava episódios daqueles tempos, Tomkins convenceu Sara e Gerald a serem personagens principais de um perfil que ele escreveria para a revista “New Yorker”, da qual era repórter. Ampliado, o perfil se transformou no livrinho (são só 125 páginas, incluídas aí uma apresentação de Sergio Augusto e um prefácio de Tomkins).

É injusto limitar a Paris a efervescência cultural e mundana daqueles tempos. Era no parisiense Montparnasse que ficavam os bares nos quais todos dividiam as mesmas mesas. Era em Paris que aconteciam os saraus de Gertrud Stein, as estreias do Ballets Russes ou os salões de artes plásticas nos quais brilhava o então nascente modernismo. 

Mas muito do que essa gente viveu acontecia nas praias da Riviera Francesa que Sara e Gerald Murphy descobriram a convite de Cole Porter (Gerald e Porter foram colegas na Universidade de Yale). Foi ali que, depois de dois anos em Paris, eles construíram sua casa de praia — a Villa America —, epicentro de todo o movimento. 

Viver bem era passar o dia na praia, onde Sara punha seu colar de pérolas para tomar banho de sol, e as noites na Villa America ouvindo a coleção de discos de jazz de Gerald. Era na Riviera que Picasso praticava seu hobby de fotografar bundas — só bundas — de banhistas que se curvavam à beira-mar para catar conchas.

Sara e Gerald foram os mais significativos americanos que, aproveitando o câmbio favorável, buscaram a Europa para fugir do moralismo que amortecia os Estados Unidos (foi a época da instituição da Lei Seca) e encontraram os artistas que, estimulados pelo fim da Primeira Guerra Mundial, rompiam as barreiras impostas pela arte convencional. Dinheiro e criatividade nunca se deram tão bem. 

O dinheiro de Gerald Murphy vinha do comércio. Seu pai era dono de uma bem-sucedida loja de artigos de couro em Nova York. Gerald tinha o suficiente para viver dez anos entre Paris e a Riviera.

O livro contém uma série de situações pitorescas, como o mural que Picasso pintou numa das paredes da casa que ele também alugou na Riviera. O proprietário do imóvel ficou furioso e exigiu que o artista derrubasse a parede e construísse outra.

Gerald também era pintor. Chegou a expor no Salão de Paris, mas não alcançou o sucesso de seus amigos. Sua arte foi redescoberta nos anos 60, quando foi visto como um precursor da arte pop. Seu período de pintor limitou-se aos dez anos na França. 

Depois que voltou para a América, nunca mais pegou num pincel. Muito do pouco que produziu ficou desaparecido. Entre estas obras, havia uma pequena pintura que ele fez para servir de placa na Villa America. 

Quando a casa foi vendida, em 1951, a placa foi substituída por outra, e o trabalho de Gerald Murphy desapareceu. 

E ficou desaparecido 34 anos, até que Honoria, a filha mais velha de Sara e Gerald, foi visitar a casa onde vivera na infância. A Villa America estava em ruínas, mas ela encontrou o filho do caseiro daqueles tempos. 

Ele morava ainda na casinha que era usada como ateliê e deu de presente para Honoria um embrulho que o pai guardara por mais de 30 anos para ser devolvido aos Murphys, se eles um dia aparecessem. 

Era a placa original!